Conheça a primeira Era dos quadrinhos de super-heróis americanos.
Um dos trabalhos mais árduos e mais imprescindíveis para um historiador – e também mais importantes para a historiografia – é saber periodizar. Elaborar uma cronologia é meramente elencar fatos de importância variável de acordo com um critério determinado, mas periodizar é definir as características de uma época, notar seu começo, sua fixação e superação. Em outras palavras, é dar sentido ao que está desordenado. E é tarefa do historiador organizar o caos para que o passado possa ser inteligível e tenha alguma importância.
Dito isso, tudo é passível de ser periodizado, mas, ao fazê-lo, é muito difícil fugir da criação de uma “Era de Ouro”, um tempo idealizado em que tudo seria melhor do que hoje. Nas mitologias em geral, especialmente a grega, a Era de Ouro foi localizada no passado e as gerações estariam condenadas uma degenerescência constante – e também à eterna esperança da volta desse passado paradisíaco. Após o Iluminismo e sua crença inabalável no Progresso, a Era de Ouro passou a ser localizada no futuro, e este a ser sonhado como a era da emancipação humana.
Parece que os historiadores que se dedicaram a estudar os quadrinhos se inspiraram na mitologia grega para estabelecer sua periodização nas Eras… de Ouro, de Prata, de Bronze, de Ferro e mais recentemente, como ninguém arrisca uma denominação melhor (ou porque os metais famosos acabaram) a Era “Pós-Moderna”.
Talvez para você que acompanhe quadrinhos há algum tempo isso não seja novidade, mas imagino que aqui nesse blog existam muitos leitores que não sabem ao certo o que são essas eras, ou simplesmente desconheciam a denominação. Seja você um leitor experimentado ou um jovem mancebo a procura de conhecimento, eu modestamente lhes apresento a Era de Ouro dos quadrinhos (de Super-Heróis, pelo menos) e o surgimento dos elementos que se tornaram clássicos no gênero supers.
O Começo
Quem foi o primeiro super-herói? Gilgamesh, rei de Uruk, na sua busca pela imortalidade? E as primeiras histórias em quadrinhos? As pinturas rupestres já as sinalizavam. É preciso ser sábio e escapar do fetiche da origem, mas é possível procurar por um começo. E tudo começou com os chamados heróis pulp.
As revistas pulp, chamadas dessa forma pela baixa qualidade e preço do papel (polpa), apresentavam contos de aventura, mistério, terror, ficção científica etc. com protagonistas que possuíam algumas características que lembravam os supers, como máscaras e codinomes. Bons exemplos são Doc Savage, O Sombra e Bucky Rogers.
Inspirado por esse heróis pulp, muitas vezes chamados de “homens de mistério”, Lee Falk cria em 1934 o famoso mágico Mandrake e, em 1936, O Fantasma.

O Fantasma, Lee Falk e Mandrake
Em 1935 Jerry Siegel e Joe Shuster (exatamente, os criadores do Superman) apresentaram ao mundo Doctor Occult, The Ghost Detective, um detetive com poderes místicos com direito a um uniforme.
Com o relativo sucesso desses personagens, mais hq’s inspiradas em heróis pulp surgiram, dentre elas a famosa Detective Comics, que mais tarde publicará as história do Homem-Morcego.
Mas foi somente em 1938 que o Homem do Amanhã surgiu. O Superman tinha poderes fora de qualquer limite concebível para época, um uniforme, uma identidade secreta… oficialmente o primeiro super-herói, e seu sucesso foi estrondoso.
Como toda luz cria consigo sua sombra, em 1939 surgia outra característica marcante: o super-vilão, o Ultra-Humanóide, inimigo do Super. Talvez ele não tenha sido o primeiro, como Fu Manchu pode atestar, mas com certeza não seria o último. O fato é que tanto quanto capas e identidades secretas, os super-vilões são parte essencial do gênero.
O sucesso do Superman foi tanto que Bob Kane foi incumbido pelo seu editor de criar um personagem que pudesse rivalizar com ele em termos de vendas. Muito mais inspirado nos heróis pulp, muito mais sombrio, em 1939 surgia o Batman, que em sua versão original utilizava armas de fogo! Aliás, contrastando com suas versões posteriores, os super-heróis da Era de Ouro eram bem mais brutais. Era muito comum que matassem deliberadamente seus inimigos, o que pode chocar alguns leitores que só conhecem as versões atuais de personagens (recomendo as edições da Panini que reúnem as primeiras histórias do Superman e do Batman, para quem se interessar).
A Consolidação
Com a crescente demanda por super-heróis eles começaram a surgir, alguns estão aí até hoje como Capitão Marvel (agora Shazam), Flash, Lanterna Verde e Mulher Maravilha, mas quase infinitos outros ficaram restritos à Era de Ouro como por exemplo Captain Thunder.
Alguns elementos do gênero começavam a ganhar corpo: habilidades extraordinárias, identidades secretas e uniformes.
Em 1940 aparece outro elemento característico do gênero: o sidekick! Para amenizar o tom sombrio das histórias do Batman surge o Menino Prodígio, com o qual toda criança podia se identificar e em pouco tempo quase todo super-herói tinha seu parceiro-mírim. Os mais famosos dessa época incluem Speedy (aqui no Brasil Ricardito), parceiro do Arqueiro Verde e Bucky, parceiro do Capitão América.
Falando em Capitão América, com a inevitabilidade da guerra anunciada no início de 1940, ele surge como o arquétipo do herói patriota, esmurrando Hitler na capa de sua edição número 1, mas ele não foi o primeiro “super-patriota”, Tio Sam estreou no início de 1940 e o Capitas só no final. O mercado havia mudado: heróis e super-heróis patriotas surgiram por todos os cantos (um dos mais famosos sendo o Blackhank, líder do esquadrão Blackhank) e mesmo os que não eram em sua origem, como o Superman, acabaram tornando-se para atender as exigências do mercado.
Um elemento clássico foi também adicionado no emblemático ano de 1940: as super-equipes. A Sociedade da Justiça debutava em All Star Comics #3, reunindo os heróis mais conhecidos das revistas National Comics e All-American Comics. A ideia dos super-heróis habitarem um mesmo universo tinha algo de poderoso, como podemos atestar até hoje. Com o sucesso outras equipes se formaram, como os Sete Soldados da Vitória e, algo similar, a Família Marvel.
O Crepúsculo dos Ídolos
Os quadrinhos eram um mercado em expansão e títulos não tão memoráveis (e nem tão publicáveis) abundavam. Um dos mais bizarros sendo The Red Bee, que enfrentava o crime com abelhas treinadas!
Ao final da Segunda Guerra os quadrinhos de super-heróis foram perdendo espaço. Após Hiroshima e Nagasaki alguém à prova de balas não parecia assim tão… Super. Foi nessa época que a kriptonita passou a ser um material radioativo e alguns super-seres com origens “nucleares” surgiram, mas os supers já não despertavam a atenção dos leitores como antes. O gosto do público estava mudando e quadrinhos de terror e piratas tornaram-se mais populares.
No final da década de 40 e início dos anos 50 houve o Crepúsculo dos Super-Heróis, com várias revistas sendo canceladas… o fim de uma Era, que pressagiava o início de outra, com suas próprias características e inovações, a Era de Prata. Conheça-a aqui.
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Faltou falar da lei americana que censurava os quadrinhos e que deu origem ao sidekick que você mencionou.
Vc está se referindo ao Comics Code Authority? Se for ele é de 1954, e ficou marcado na Era de Prata.
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Só corrigindo: Batman foi criado em 1939 e não 1938! Abraços!
Corrigido. Obrigado.
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O período anterior a Action Comics #1 é conhecido como Era de Platina, o crepúsculo dos super-heróis costuma ser chamado de interregno, já que se situa entre as Eras de Ouro e de Prata.
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Excelente resgate. Dizem que a inspiração para o Batman teria vindo de um filme, “The Bat”. É verdade?
Sim, umas das influências é o filme “The Bat Whispers” (1930), que é inspirado no filme “The Bat” (1926). Mas tem muitas outras influências no Batman, como o Fantasma, Sherlock Holmes etc.
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olá, gostaria de saber se posso usar alguns elementos dessa matéria para um vídeo “documentário” das eras dos quadrinhos(de super-heróis) eu irei dar os devidos créditos
Claro! Depois deixa aqui o link pra gente ver. Abraço.
aqui está o link: https://www.youtube.com/watch?v=N1Sgqfr_2y8&t=51s
Legal. Parabéns pelo trabalho.
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