Há um número exato de vezes em que você pode ler uma mesma revista em quadrinhos antes de achar tudo aquilo muito infantil. É natural. Isso não quer dizer que vá gostar menos ou que aquela história vá ter menor valor pessoal. Mas chega um ponto que o cérebro pede por mais.
Se você tivesse por volta de 30 anos em 1990 nos Estados Unidos, a resposta para essa “sede” seria o selo Vertigo.
Veja, os quadrinhos são um reflexo do seu tempo, tanto como roupas e carros de cada época. E como cada roupa ou carro, cada quadrinho tem seu público designado.
Durante a Era de Ouro (1938-1952 +/-) e a Era de Prata (1954-1975 +/-), esse público era explicitamente demarcado: o infantil. Quadrinhos com super-heróis sorridentes e amigáveis eram uma literatura simples, básica, colorida, direcionada à (suposta) pálida sensibilidade das crianças.
Muito por força do Comics Code de 1954 (que estabelecia um rígido controle sobre o conteúdo das histórias) na Era de Prata ou do “experimentalismo contido” dos autores de quadrinhos na Era de Ouro, as histórias daqueles anos eram bastante… “família”.
Revistas do Superman, do Batman, da Mulher-Maravilha na DC, ou mais tarde, do Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Hulk, Thor na Marvel, eram conformistas. Elas prezavam e repetiam aqueles valores e atitudes que combinavam com uma desejável conduta familiar americana. Havia ali um modelo social implícito.
Isso não é lá uma grande surpresa. O tema já foi pesquisado em dezenas de livros e dissertações. Eles examinaram escrupulosamente cada página dos quadrinhos da época. Levaram a debates, xingamentos e fins de amizades, tal é a simbiose afetiva que os quadrinhos levaram a muitas pessoas.
Mas o foco talvez excessivo no objeto de estudo (características, formato, linguagem, etc) ou o zelo emocional pelas histórias cegaram muitos de nós para o que está do outro lado da página: o contexto.
Aos fatos:
Entre 1955 e 1970, o número de alunos universitários nos Estados Unidos triplicou (GADDIS, 2007, p. 147). Números equivalentes aconteciam na Alemanha Ocidental e França no mesmo período. Ser um “intelectual” e ser um “universitário” viraram sinônimos naqueles 15 anos.

Incluindo aqueles que tradicionalmente eram vetados nas universidades. Acima, Vivian Malone Jones, 1a aluna negra na Universidade do Alabama
Exceto aqueles que viviam além da órbita da lua, todos na Terra estavam sujeitos às pressões da Guerra Fria. No mundo bipolar, a realidade estava dividida em “capitalismo americano” e “comunismo soviético”. A pressão da divisão era mais aguda quando vista pela possibilidade do conflito com bombas termonucleares. Ninguém escaparia dessa, pouco importava o “engajamento político” de cada um.

Curiosidade técnica: a bomba “Castle Bravo”, testada em 1954 era planejada para ter 3 megatons. Para a surpresa de muitos, ela teve uma explosão de 15 megatons. “Ih!” – disseram os engenheiros.
Sem opções para decidir qualquer coisa, o governo de países como Chile, Cuba, Brasil, Somália, Etiópia, Egito, Coreia ou Vietnã nada podiam fazer além de alardear sobre as tensões políticas internas e conquistar apoio das nações-potências. Os resultados disso foram, no mínimo, desastrosos.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, onde estavam as editoras que produziam as revistas em quadrinhos, havia uma geração crescente de jovens que acusavam o governo de apoiar ações moralmente obscenas, ditaduras sanguinárias e massacres espalhados pelo globo. Eram violações indisfarçáveis “das melhores tradições americanas”. Era uma geração de ruidosos rebeldes, a geração de 68. Para eles, seria como se os heróis de quadrinhos tivessem falhado ou mentido.
No começo dos anos 70, o “missile gap” – a diferença de poder de destruição nuclear entre União Soviética e Estados Unidos – era quase nula. Os dois países tinham um número de armas nucleares mais que suficiente para destruir um ao outro várias vezes. Isso “estacionou” a Guerra Fria. Os historiadores chamam isso de Deténte. Foi ali, nesse momento de tensão congelada, que germinou a semente da Vertigo.
Já falamos aqui da trajetória de Karen Berger. A editora é a grande responsável por trás do selo, dedicado às revistas “adultas” da DC Comics. Uma universitária educada nos anos 70, ela era especialista em literatura inglesa e atenta ao cenário acadêmico e “underground” daquele período.
Berger foi o pivô que possibilitou a “invasão inglesa” nos quadrinhos americanos, que trouxe Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison e Garth Ennis, jovens intelectuais que não eram nada acadêmicos mas donos de uma criatividade inédita no mercado.
A abertura para novas abordagens criativas surgia num momento de relativa “saturação” do mercado de quadrinhos americanos, particularmente na DC Comics. As histórias do final da Era de Prata eram como a Deténte: estavam “engessadas” em algumas poucas variações do mesmo tema. Superman e Batman raramente teriam outras aventuras senão lidar com os mesmos inimigos tradicionais ou verem a si próprios em realidades alternativas por N razões. Enquanto isso, editores tradicionais, como Julius Schwartz, estavam se aposentando no início da década de 80.
Grandes sagas dos quadrinhos como Guerras Secretas e Crise nas Infinitas Terras serviam para resolver linhas narrativas convulsionadas, confusas, que satisfaziam apenas aos leitores mais antigos, que eram cada vez mais poucos. A Crise e as Guerras eram a solução para atrair o público mais jovem. Mas e os mais antigos?
Estes foram presenteados com Monstro do Pântano, Watchmen, Asilo Arkham, Hellblazer e Sandman, todos tendo Karen Berger como editora. E Sandman, talvez de forma mais completa do que qualquer outra revista que foi publicada pela Vertigo, é a verdadeira essência do que o selo representou.
É fascinante: Os primeiros números de Sandman eram claramente ancorados no interior do universo DC e foram se distanciando daquele mundo a cada número até alcançar total autonomia e identidade própria. É como se o personagem criado por Neil Gaiman fosse, ele próprio, o leitor a qual era dirigido. Nascido nas fantasias infantis de uma Era de Ouro imemorial, ele crescia – e se libertava – para se tornar o soberano de suas próprias responsabilidades.
O mundo de Sandman, embora cercado de fantasias, não era imune aos terrores da realidade. Em diferentes acordes e sabores, era exatamente isso que todas as revistas da Vertigo ficaram famosas por oferecer: fantasias realistas para um “público maduro”.
As revistas da Vertigo atendiam ao gosto daqueles que cresceram lendo quadrinhos. Isso acabou designando um novo público: o adulto. Entre as décadas de 1950 e 1980, os níveis de educação formal nos Estados Unidos cresceram como nunca antes. Vertigo dava a eles o que tal público exigia. Mas e no Brasil?
Os números de formação acadêmica no Brasil hoje estão próximos ao que era dos americanos na Guerra Fria. No entanto, as revistas da Vertigo foram publicadas aqui quase simultaneamente aos Estados Unidos desde o final da década de 1980. De lá até agora, tanto os “infantis” como os “adultos” dividem as prateleiras nas bancas. Qual é o efeito disso?
Duas hipóteses:
1. Há crianças que cresceram lendo quadrinhos “adultos” como se fossem infantis;
2. Há adultos que leem quadrinhos infantis como se fossem para “público maduro”.
Quem lê, gosta e conhece, sabe bem a diferença. Mas é compreensível surgir quem condena, critica, desqualifica ou tiraniza em função dos quadrinhos. Isso, tanto quanto em qualquer outro espaço de debate, é mais um sintoma dos velhos vícios autoritários brasileiros. Mas isso é outra história…
Super artigo, gostei muito e comecei a pegar o espírito que está por trás do selo Vertigo.
Ainda não comprei nenhuma edição, mas farei isso até mesmo antes do curso começar pra me inteirar melhor nesse universo.
E pelo que vi o melhor jeito de começar é pelo Sandman, então, começarei por ele.
Abraços galera e até o curso!
Juliano,
Sandman é algo para ser saboreado. Não há uma única linha desperdiçada. O problema é que raramente alguma outra revista na Vertigo fez jus ao nível que Sandman estabeleceu.
Se você embarcar nessas leituras vamos querer saber o que você achou.
Valeu por ler o post!!
Abs!
É possível dizer que a Vertigo foi um divisor de águas em relação à publicação de histórias em quadrinhos com teor mais adulto que tentava – e conseguia – evadir do gênero super-herói e, ao mesmo tempo, distorcer/expandir/recriar uma realidade que, aos nossos olhos vulgares, parece tão estranha, tão incômoda, tão desconexa dos problemas cotidianos e alguns ideológicos dos quais somo agentes ativos e/ou passivos. Não querendo desconsiderar todo o trabalho que fora feito antes e que serve como precursor para a história da Vertigo como selo editorial que nos trouxe de Sandman a Fábulas, passando por Hellblazer e Escalpo entre inúmeros outros exemplos que permanecem vivos na memória de leitores e expostos nas bancas quando em publicações e republicações, percebo que as coletâneas de terror e ficção científica das décadas de 1950 – antes do Comics Code fazer imperar suas regras e sua censura – foram também importantes alicerces para a construção de quadrinhos que não reproduziriam o mesmo status quo de dispor personagens no mesmo ciclo de bem x mal.
Como você bem disse acima, quadrinhos são reflexos da cultura de sua época, oferecendo a seus leitores a possibilidade de perceber diferentes aspectos de uma realidade, expondo suas contradições e permitindo que problemas sociais tão universais quanto a violência urbana e a drogadição sejam temas a serem apresentados e discutidos de forma aberta, contudo vejo que os quadrinhos não são formas estáticas de reconhecimento de uma era em que certa disposição cultural persiste como um zeitgeist tal como a moda. Quero dizer que os quadrinhos trazem em seu âmago uma característica de ser anacrônico, mesmo que a trama seja banal e com um final previsível pela chamada de capa, digressivo, pois o que fora retratado lá atrás pode reverberar nos tempos futuros ao se adaptar certos elementos para o público atual, atemporal, porque certas questões universais transcendem as máculas do tempo e podem ser discutidas tanto na época de sua produção quanto daqui a 50 anos sem perder o frescor da reflexão engajada e dos direcionamentos encontrados na nossa realidade cotidiana.
Talvez, por buscar na literatura e na pintura estas características citadas acima, compreendo que os quadrinhos se tornam uma modalidade de Arte que pode ser comparada ao Movimento Antropofágico da Semana de 1922: se, em um ponto, há um discurso e uma práxis que insiste em domar os classicismos da arte a fim de criar uma obra mais pura, mais genuína, que não soe como uma emulação oriunda de praias intercontinentais, em outro ponto, nota-se que é preciso rejeitar os modelos clássicos para se erigir uma arte mais espontânea, que fale tanto ao público das classes altas quanto o das classes baixas, que quebre os paradigmas da composição literária, musical, imagética entre muitos derivados, que provoque e faça refletir independentemente do resultado e das consequências vistas na opinião de críticos que não souberam conceber o que estava a frente de seus olhos pois sua formação clássica os impedia, de, no geral, abraçar a entropia, o caos com o objetivo de produzir a mais tresloucada das artes. Acho que me excedi um pouco, mas esta é a ideia que tive ao ler seu texto e pensar com meus botões sobre a metafísica dos quadrinhos em função da disseminação do selo da Vertigo, não só na DC, como também para outras editoras, seja Marvel, Dark Horse, Image ou muitas outras espalhadas mundo afora.
André,
acho que a gente não pode nunca se recriminar por pensar, menos ainda por expor as ideias. Sua digressão é o tipo de coisa que mais queríamos provocar quando começamos os Quadrinheiros. Mas preciso da sua ajuda pra entender alguns pontos.
Com “anacrônico” você não quis dizer “atemporal”? Sem dúvida que os quadrinhos têm essa carga “atemporal”, ultrapassando vários modismos de época. Afinal, trata-se de arte.
Uma vez que você concorde com isso, quadrinhos estão ao lado de pinturas, esculturas ou composições que são vistas e tocadas há séculos. É claro que elas sempre vão dialogar de formas diferentes com cada espectador com o passar do tempo.
A singularidade da arte como traço humano reside bem aí: na sua qualidade de dialogar com o receptor, seja ele quem for, quando for, como for.
Opinião minha, quadrinhos são melhores porque exigem ainda maior interação entre a obra e o leitor. Mas um blogueiro de música ou pintura pode discordar… XD
é interessante notar que o selo Vertigo publicou muita coisa que se resume em sexo, violência e magia e colocou como selo adulto, muita coisa mesmo. A própria saga do monstro do pântano de Alan Moore foi totalmente publicada com selo DC Comics e não Vertigo, boa parte de Sandman também, claro esse selo nem existia na época, mas o que quero dizer é que esse selo publicou muita patifaria sexual, violenta e “mágica” como se isso fosse coisa para “mature readers!” não são. o que o selo Vertigo fez, não em todas as suas publicações, mas em boa parte delas, foi pegar aqueles aspectos da produção de um Moore ou de um Miller, que nesses autores não era regra absoluta e torná-los a essência da obra.
há sexo e violência em Watchmen. mas há um arcabouço de ideais fervilhantes e um caleidoscópio de genialidade que ultrapassam o mero mostrar a violência e o sexo.
parece que o selo Vertigo apenas inundou de gore os quadrinhos.
mas há exceção. Grant Morrison, Azzarello e alguns outros conseguem sair do lugar comum de enfiar muita violência, sexo e diálogos boçais como se isso fosse “adulto”.
Alexsandro,
sem dúvida que uma “boçalização” dos produtos culturais acontece. Mas nem por isso quer dizer que toda produção naquele meio é meramente “mais do mesmo” subtraído da qualidade original. Como você mesmo apontou, no meio de muita coisa há seus Grant Morrison.
Não vamos esquecer que o Michael Jackson criou obras singulares usando exatamente as fórmulas do “mais do mesmo”, o pop e fez do meio um dos ícones mais formidáveis da música contemporânea.
Mas para fins de clareza, quais obras da Vertigo exatamente você acha que se classifica como patifaria sexual, violenta e mágica?
Tamos curiosos aqui.
A fase do monstro do pântano, pós-Moore, claro, e pós-Veitch. Com a saída de Veitch, o título esqueceu que era para adultos e acabou dando show de “choquismo” de “massaveísmo” desnecessário. Hellblazer em seus últimos anos se tornou mais do mesmo.
Preacher se segurou graças a narrativa ímpar de Ennis, mas há momentos de “impactismos” delirantes, mas é exceção isso e não regra.
Fábulas contém muitas ideias genias aliadas a uma narrativa gráfica excepcional, mas há certos lugares comuns que poderiam ser evitados.
Lúcifer é bom, sempre.
Sandman não tem erros, é uma das poucas obras ligadas a esse selo que permaneceram com a imaginação e a genialidade, além de uma sabedoria dramática legítima para expressar as ideias, unidas do número 1 ao último número. Não há mancha na criação de Gaiman. É perfeita.
Por que às vezes as ideias são excelentes, a imaginação alça voos maravilhosos. Mas quando o escritor vai colocar no papel, descobre que sua imaginação é bem maior do que o seu poder de realização, descobre que ele não consegue dar conta do que almeja criar, aí o que sai é sempre mais do mesmo. Gaiman, mês a mês, provou que é único nessa indústria.
Enfim, é fácil amar Gaiman, Moore, Morrison, Veitch e outros. Difícil é conseguir a mesma qualidade tanto nas ideias quanto na realização das mesmas.
Alexsandro,
te confesso que não li o Monstro do Pântano depois do Alan Moore. Pelo menos não li mais do que alguns números isolados, não o suficiente pra reconhecer um arco inteiro.
O estilo do Veitch é aquele mesmo, cheio dos eventos “chocantes”, até excessivos (como colocar Jesus nas histórias). Não foi por acaso que ele saiu da DC às turras. Mas até o Zé do Caixão teve lá seus momentos de originalidade através do excesso. Virou estilo e até deu nome pra ele!
Os outros que você menciona, Preacher, Fábulas, Lúcifer e acima de tudo Sandman, todos tem um fator em comum: são arcos fechados. Exceção aberta pro Bill Willingham, que ainda está encerrando o Fábulas.
Realmente é difícil conseguir a mesma qualidade. Mas só ainda não estou muito convencido que tudo que veio depois do “auge” da Vertigo foi a patifaria que vc falou. Sem dúvida apareceu coisa fraquinha (pessoalmente não sou fã de 100 Balas), mas a criatividade muitas vezes surge da limitação de um formato.
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