Ao invés de “quem sou”, já se perguntou por que você é o que é?
“Coisa engraçada sobre o Sonhar. Por aqui, ‘quem é você? ’e ‘por que você é?’ meio que são a mesma pergunta.”, explica o corvo Matthew em The Sandman Universe, lançada no último dia 8 de agosto de 2018. A edição marca o 30º aniversário do lançamento da obra-prima de Neil Gaiman, Sam Kieth, Mike Dringenberg e Dave McKean que revolucionou os quadrinhos e deu origem ao selo Vertigo da DC Comics.
Avançando sobre onde parou, com Sandman n. 75 (1997), The Sandman Universe dá continuidade à história do Senhor dos Sonhos, um dos sete Perpétuos, e a corte de complexos personagens que o acompanhou. Vale lembrar, em 2013 foi publicada Sandman – Overture (no Brasil saiu como Sandman – Prelúdio, pela Panini em 2015) que revisitou o personagem narrando o que aconteceu com Morpheus antes de ser aprisionado por Roderick Burgess, em Sandman n. 1.
Desta vez, sob a batuta de Gaiman, estão os roteiristas Nalo Hopkinson, Kat Howard, Simon Spurrier e Dan Watters, ao lado dos desenhistas Bilquis Evely, Dominike “Domo” Stanton, Tom Fowler, Max Fiumara, Sebastian Fiumara, e Mat Lopes. E por que ela vale ser lida?
Assim como naquela primeira edição de 1988, o mundo de Sandman vive e respira nas entrelinhas do universo DC. Existe um mosaico de linhas alterativas, de multiversos, de retcons, de reboots de personagens que por razão ou outra foram mesclados, fundidos ou relegados à margem da memória dos leitores.
A “encarnação atual” de Sandman, ele mesmo, é filho de Hipolyta Hall, uma ex-componente da Corporação Infinito, que por sua vez era uma “versão” dos Novos Titãs da Terra 2 e que volta e meia apareciam entrecruzadas nas sagas que antecederam a Crise nas Infinitas Terras, de 1986.
Mas o que poderia ser bastante confuso é justamente um dos ingredientes mais saborosos de Sandman. Em Universe, a fauna de personagens que já passaram pelas páginas da DC, ou então que pertencem à mitologia ou à literatura, são aludidos e evocados a tomar seu lugar em novas histórias.
**** Antes de continuar, um aviso: há SPOILERS a partir daqui!! ****
Como diziam as Bondosas em Entes Queridos, inícios são coisas confusas, ao contrário dos finais, onde se sabe bem onde está. Aqui não podia ser diferente.
A seleção dos personagens que aparecem em Universe sugerem os novos rumos que a DC e Gaiman pretendem desbravar com seu novo time de autores em novas revistas que serão lançadas. Entre aqueles mais queridos dos fãs, já deram as caras:
O mordomo/bibliotecário Lucien;
Os irmãos Cain, anfitrião da Casa dos Mistérios, e Abel, morador da Casa dos Segredos;
O jovem mago Tim Hunter de Livros da Magia;
Lúcifer (sim, aquele, o caído);
O corvo Matthew, que atravessa e costura as cerca de quatro linhas de enredo que compõem a edição.
Além deles, a edição revela novos personagens, como Dora, a esquentada habitante do Sonhar, o casal da Louisiana Latoya e Maggie, suas irmãs Habibi e Lumi, além das deidades Lady Erzule e o Rei Aligator.
Boa parte da narrativa de Sandman Universe remete à pontas soltas deixadas nos últimos dois arcos da série original, Entes Queridos e Despertar. A mais óbvia e foco principal é o sumiço do Senhor dos Sonhos, que abandonou seu reino, o que provoca efeitos catastróficos no Sonhar, como rachaduras na realidade, o desaparecimento de histórias e a fuga de pesadelos. Esta linha se volta ao conselho dado por Destruição para Daniel, “recém encarnado” como Sonho logo após a morte de Morpheus. “Sabe que pode abandonar tudo isso, não? As coisas seguirão funcionando sem você. Venha cruzar as estrelas comigo”, aconselhou o irmão mais velho.
“Daniel”, aliás, era um nome que o próprio Sonho recusou em Despertar, mas que os vassalos do Sonhar parecem não ter aversão em usar para se referir ao seu soberano.
Outra ponta solta, dilema insolúvel que Gaiman aborda com frequência, é a difícil relação entre ser e fazer, entre destino e decisão, no caso a relação de Lúcifer com seu Pai e o plano que Ele determinou para todos. Disposto a quebrar o círculo imposto pela carne e dor da vida, Lúcifer se diz determinado a fazer o que for necessário. No caso, destruir seus próprios símbolos e tornar-se vulnerável à dor e morte, tal como Ele já fez antes. Ironia apontada pelo corvo que conversa com o Caído, trata-se, portanto, de esperança.
Esperanças, confusões, velhos e novos personagens são, afinal, o que traz este novo capítulo de Sandman. Promessas e dívidas plantadas pelas várias mãos que escrevem e desenham são os ingredientes que buscam atrair novos leitores, assim como satisfazer a velha sede por boas histórias dos antigos.
Tal como Shakespeare se fez ouvir nas palavras de Próspero, Gaiman usa seus personagens para afirmar as razões que dão a ele e seus colaboradores uma identidade. Torna-se conhecido, portanto se reconhece, como aquele que há 30 anos vem contando a mesma história. Ele é o narrador. E para a história continuar, o fim precisa voltar a ser começo.
O show tem que continuar.
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Muito bom