A experiência da percepção: Blake, Huxley, The Doors e Peter Milligan

Ressonâncias entre múltiplos artistas e mídias.

É possível ver relações entre obras de artem como a inspiração de V de Vingança ( Alan Moore e David Gibbons) no livro 1984 (George Orwell). Para além da inspiração, algumas relações possuem uma certa sinergia, parece terem sido planejadas. Shade, O Homem Mutável (Peter Milligan e Chris Bachalo), As Portas da Percepção (Aldous Huxley) e The Doors (Jim Morrison, Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore) possuem claras ressonâncias umas nas outras. Todas as obras possuem uma ideia central, que é alcançar algo maior a partir da experiência do banal.

Em 1954 foi publicado o livro As Portas da Percepção, em que Huxley descreveu sua experiência com o uso de mescalina. A expectativa do autor era ver cores aleatórias, itens flutuando no espaço e algumas outras trivialidades que lhe pareciam engraçadas. O que aconteceu foi a observação de uma forma diferenciada de objetos e aspectos comuns do cotidiano e isso lhe trouxe outra interpretação sobre móveis e plantas que esteve a vida toda habituado. O livro é constantemente citado por artistas como Alan Moore, Grateful Dead e até The Beatles, que incluíram o autor na icônica capa do disco Sgt Peppers: Lonely Hearts Club Band.

Huxley destacado acima

A ideia de As Portas da Percepção nasceu no poema O Casamento do Céu e do Inferno de William Blake. No poema existe a seguinte colocação “Se as portas da percepção estiverem abertas, tudo parecerá ao homem como é, infinito”. As obras dos três artistas estão intrinsecamente ligadas ao poema de William Blake. Aldous Huxley, Jim Morrison e Peter Milligan enxergaram nesta frase o valor de suas experiências em suas vidas. Com as portas da percepção abertas, eles podem sentir o real valor das coisas presentes no universo.

Huxley diz em As Portas da Percepção:

“No centro da sala havia uma pequena mesa para máquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao meu, estava uma cadeira de vime e, além dela, uma escrivaninha. As três peças formavam um intrincado desenho de horizontais, verticais e oblíquas – desenho tanto mais interessante por não estar sendo interpretado em termos de suas relações de espaço.”

O autor começa a observar móveis, objetos e suas relações com o mundo, porém dedica algumas páginas a uma específica cadeira que o escritor possuía em sua casa. Ele diz que não a via apenas como um objeto que ele poderia trocar, quebrar e sentar. A cadeira já foi matéria prima bruta e com aplicação de alguns conhecimentos humanos tornou-se um objeto útil na vida do autor, ela existe, matéria e ideias convergiram para a criação da cadeira.

Aldous Huxley

Ela faz parte do universo, do todo que consideramos existência, tanto fisicamente, quanto conceitualmente, sistema métrico e tudo que foi utilizado para a composição daquele móvel. Huxley cita a fascinação por observar algo tão cotidiano que normalmente não se demonstra nenhum tipo de apreço. Tanto a criação quanto a função da cadeira convergem na existência e ambas possuem seu propósito. A possibilidade de criar uma vivaz experiência com a vida, fez Huxley notar um objeto simples que não existe para agradar, nem desagradar, apenas existe e a existência é suficiente para uma experiência.

Assim como o autor pôde encantar-se por uma cadeira sob efeito de mescalina, o livro foi grandioso na vida de Jim Morrison e alguns amigos. O nome The Doors deriva do livro de Huxley e do poema de William Blake, uma homenagem às pessoas que abriram a mente dos jovens para as experiências que a vida pode proporcionar. As músicas da banda são uma expressão da experiência por meio da arte, ela tenta emular sensações em suas composições.

A música Moonlight Drive, por exemplo, tenta apresentar uma experiência ao luar tarde da noite, possui um ritmo lento e cadenciado, onde a letra descreve um passeio de carro e à pé sob a noite de alguma cidade. Morrison deseja transformar as sensações desta noite em música. O fato de transformar uma experiência simples em uma aventura sonora, assemelha-se muito a observar um móvel e entender melhor o mundo, como fez Huxley. Ambas as experiências criam sensações sob aspectos simples da vida.

Shade, O Homem Mutável deixa claro em suas capas e em suas histórias a influência de As Portas da Percepção e da banda The Doors. Jim Morrison, ao reencarnar por algum tempo por meio dos poderes de Shade, encontra uma moça que diz ter sido uma antiga namorada. Ela sofre no hospital, pois deseja encontrá-lo uma última vez. Porém ele está em um outro corpo e não possui a mesma aparência que tinha em vida. Sua voz e sua consciência permanecem intactas e ele canta para a moça uma última vez.

A loucura em Shade é representada em aspectos exagerados da existência, coisas simples da vida que o personagem sente, admira e reflete que acabam tomando proporções maiores que o esperado, geralmente de forma negativa. É como se as portas da percepção de Shade estivessem abertas para um mundo podre que lhe consome. Em determinado momento ele faz uma reflexão sobre os EUA : “Um país de grupos, raças e ideias díspares e insanidades fingindo estar juntos por uma ideia chamada América.” Com a loucura, ele enxerga apenas a insanidade da sociedade norte-americana.

Shade contempla o mundo e, assim como Huxley, sente os objetos e aspectos na vida, inclusive transformando-se neles de forma literal. O personagem já se transformou em uma estrada e relata que é solitário e triste, assim como transformou-se em um lençol, em uma mulher e em diversas outras coisas e pessoas. Ele costuma observar e tentar ver a infinidade da existência de cada um desses seres, objetos e aspectos em volta dele no universo.

Blake, Huxley, Morrison e Milligan mostram que enxergar além do cotidiano, entender o universo e viver experiências reais é algo diferente e pode render alguns momentos de grande lucidez na vida. A arte é a chave que vai sendo construída aos poucos por histórias e conhecimentos, e que um dia possibilitará a abertura dessa porta e a percepção poderá tornar-se parte fundamental do pensamento, da vida e da realidade.

 

Sobre John Holland

Procurando significados em páginas de gibi enquanto viaja pelos trilhos do conhecimento e do metrô. Sempre disposto a discutir ideias e propagar os quadrinhos como forma de estudo, adora principalmente a Vertigo, está sempre disposto a conhecer novos quadrinhos e aprender o máximo de coisas possível!
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4 respostas para A experiência da percepção: Blake, Huxley, The Doors e Peter Milligan

  1. Muito bom o texto cara,parabéns.

  2. Silvio Medeiros disse:

    Muito bom ! Eu já conhecia parte dessas ligações e sinergias! Sou fã do The Doors, Huxley e quadrinhos… e rock… e coisas mutáveis e que ultrapassam as portas da percepção !

  3. Pingback: The Doors vai ter biografia em Quadrinhos por Leah Moore | Quadrinheiros

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