30 anos de Sandman: por trás do véu apolíneo

Sandman-750x380Sobre a série que consagrou os quadrinhos como arte.

Por Attila Piovesan*

Em novembro completam-se 30 anos da publicação do primeiro número da influente, comentada e premiada série que alçou Neil Gaiman ao estrelado: Sandman. A história foi publicada originalmente de 1988 a 1996, em 75 edições mensais e uma especial, posteriormente compilado em 10 volumes. Seu universo narrativo foi expandido por duas minisséries da Morte, a irmã mais velha do Sandman, um especial em prosa, ilustrado por Yoshitaka Amano e outro no formato de quadrinhos, além da minissérie Sandman: Prelúdio, que conta a história imediatamente anterior ao aprisionamento do Rei dos Sonhos (mas só entende mesmo quem já conhecer a série toda) além de outras histórias feitas por terceiros com anuência de Gaiman.

Muito já se disse e se escreveu sobre esta HQ que marcou época e ainda hoje continua conquistando legiões de leitores, que reapareceu recentemente nos quadrinhos da DC (em Noite das Trevas: Metal) e seu universo será revisitado pela Vertigo com novas histórias em título da linha The Sandman Universe. É fácil creditar o sucesso da série ao talento e erudição de Gaiman e seus colaboradores, ao mergulharem no viés mitológico e literário das histórias. De fato, Ésquilo, Virgílio, Ovídio, Filóstrato, Apuleio, Apolônio de Rodes, Shakespeare, Marlowe, Milton, Webster fazem parte do caldeirão cultural de mais de 2000 anos que Gaiman utiliza de forma mais ou menos evidente no decorrer da narrativa.

No entanto, é igualmente fácil se perder nas inúmeras referências espalhadas pelas revistas e esquecer uma coisa essencial: que Neil Gaiman, acima de tudo, é um grande nerd. Nerdaço, na verdade, e muito da forma que Sandman teve se deve ao seu lado geek.

Antes de mais nada, é sempre bom lembrar que Sandman está no Universo DC. Apesar da editoria ter limitado muito a interação dos títulos da Vertigo com o lado mais colorido dos super-heróis, o próprio Gaiman nunca esquece disso. O ambiente das histórias de Sandman deriva, em grande parte, do mundo que começou a ser construído com a publicação da primeira história do Super-Homem.

Sim, sou cria dos anos 80 e 90, quando no Brasil o Superman era chamado assim só no cinema e na TV. Pra mim, nos quadrinhos, é Super-Homem e ponto, a despeito do Superman da Ebal, que é coisa de antes da minha época… (Fonte da imagem)

O próprio Homem de Aço e Batman são publicados ininterruptamente desde o final dos anos 1930. Outros tiveram seu momento de glória com a publicação inicial do próprio título, até o cancelamento por falta de lucratividade. De qualquer forma, mesmo os personagens relegados a coadjuvantes em revistas alheias tornaram-se parte integrante de uma única e grande “história”, de um universo ficcional que acolhe todos os milhares de personagens criados desde a fundação da primeira versão da DC Comics, a National Allied.

Ações e histórias escritas nos anos 1940 podem ser interpretadas sob uma ótica revisionista por escritores modernos – e Sandman não é exceção. Sua história se situa no mesmo mundo de super-heróis do Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha, e sem isso Gaiman nunca seria capaz de tecer a saga trágica de Sonho dos Perpétuos.

Existem vários personagens dos quadrinhos com o nome Sandman e, embora outras editoras tenham se servido do conceito folclórico do Homem de Areiaabordo apenas seus predecessores da DC Comics. A versão de Gaiman foi a última de quatro. A primeira surgiu em 1939, no número 40 da revista Adventure Comics, criada por Gardner Fox e Bert Christman.

Sandman original era um típico personagem pulp: um detetive milionário e combatente do crime chamado Wesley Dodds, que utilizava equipamentos incomuns, como pistola de gás sonífero. Para se proteger dos efeitos da própria arma, valia-se de uma máscara de gás. Sua única habilidade extraordinária eram sonhos premonitórios enigmáticos. 

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A segunda versão do Sandman surgiu nos anos 1970, criada por Joe Simon e Jack Kirby. Ele tinha um visual super-heroico (roupa colante amarela e vermelha) e a sua missão era evitar que criaturas de pesadelos invadissem o mundo e proteger os sonhos das crianças – principalmente do jovem Jed Paulsen – com a ajuda de duas criaturas (Brute e Glob) e de um apito que acordava as pessoas de sonhos ruins.

Originariamente, esse personagem deveria ser o Sandman “definitivo”; porém, no início dos anos 1980, o roteirista Roy Thomas alterou tal conceito e revelou que ele era um cientista chamado Garrett Sanford, construtor de uma máquina capaz de ler sonhos. Depois de salvar a vida de uma pessoa comatosa aprisionada por um pesadelo, ele encontrou-se cativo em uma dimensão onírica chamada Fluxo do Sonho, constituída de fragmentos do inconsciente coletivo. Thomas também introduziu a limitação de Sanford em permanecer somente uma hora por dia no mundo real. No entanto, enlouquecido, devido à solidão e à incapacidade de viver na Terra, ele cometeu suicídio.

A terceira versão do personagem surgiu em 1988 (pouco antes do Sandman de Gaiman). Seu nome era Hector Hall, filho dos super-heróis Gavião Negro e Mulher-Gavião. Depois de morrer em combate, seu espírito adentrou o Fluxo do Sonho, sendo encontrado pelas entidades Brute e Glob e transformado no novo SandmanHerdou de Sanford, seu predecessor, o corpo e a limitação de visitar o mundo desperto apenas 60 minutos por dia. Hector tinha uma namorada chamada Hippolyta (LytaTrevor – a super-heroína Fúria – e descobriu que ela esperava um filho seu. Passou a visitá-la durante as noites, enquanto ela dormia. Hector e Lyta (ainda grávida) casaram-se e passaram a viver no Fluxo do Sonho. 

Todas as versões anteriores foram abordadas no Sandman de Gaiman. Em um retcon explicou o fato de existirem tantos Sandmen, e o porquê de uma entidade tão importante, Morpheus, o verdadeiro Mestre dos Sonhos, jamais ter interagido antes com outros personagens da DC Comics. Sonho foi aprisionado por uma seita ocultista em 1916 e o universo, ao perceber sua ausência, tentou sanar o problema, utilizando alguns substitutos. Se, por um lado, o autor com isso explica a origem dos sonhos proféticos de Wesley Dodds, por outro revela que o Fluxo do Sonho nada mais é do que a tentativa feita por Brute e Glob de criar uma versão própria e independente do reino onírico (fazendo Sanford e Hall pensarem que protegiam a dimensão dos sonhos enquanto, na verdade, estabeleciam uma barreira entre a mente de uma criança e o resto do verdadeiro mundo dos sonhos). 

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Sonho dos Perpétuos, na visão do artista Kelley Jones. O desenho do elmo nas mãos de Morpheus, um dos seus símbolos de poder, foi baseado na máscara de gás de Wesley Dodds, o primeiro Sandman

Dos personagens anteriores que usaram o nome, foi o da terceira versão – principalmente por causa da ligação com Lyta Trevor (agora com o sobrenome do marido, Hall) – que teve impacto direto na série, principalmente no penúltimo arco narrativo – Entes Queridos – que narra a angustiante derrocada do Rei-Sonho perante as vingativas Fúrias da mitologia grega. 

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O encontro de Lyta e seu marido Hector Hall, o terceiro Sandman, com Morpheus

A morte de Morpheus (depois de 22 anos não é mais spoiler, né?) marca uma ruptura interessante com o universo dos super-heróis, ainda que dependa dele. Sonho, por exemplo, longe do arquétipo do herói musculoso e violento, é magro, pálido e raramente resolve conflitos de forma violenta, apesar de ser uma das entidades mais poderosas do multiverso! Mesmo assim, ele morre – ou arruma uma forma extraordinariamente complicada de cometer suicídio –, o que revela um aspecto curioso presente nos quadrinhos de super-heróis, que é a submissão do transcendental ao humano.

Afinal, no Universo DC o próprio Deus Todo-Poderoso pode ser seriamente desafiado, como na saga “Gótico Americano”, publicada em Monstro do Pântano. Além do mais, se neste mundo o Super-Homem salva as pessoas num edifício em chamas e evita assalto a bancos, por outro lado, a despeito de todos os poderes que representam o bem, uma cidade pode ser vaporizada em chamas atômicas, como aconteceu com Montevidéu em DC Um Milhão; ou então que incontáveis universos possam ser destruídos como na Crise nas Infinitas Terras. Trata-se de um mundo em que, apesar de Batman, o Coringa ainda assassina centenas de pessoas. Ou então, poderes malévolos controlem o mais pacato ser, induzindo-o a cometer atos indescritíveis de horror, como é o caso do Doutor Dee, um vilão clássico da Liga da Justiça, na sexta edição de Sandman (que por sinal é uma das que nos faz lembrar o motivo da série originalmente ter sido anunciada como quadrinho de terror).

Os quadrinhos de super-heróis americanos, por causa de sua natureza comercial, devem criar histórias sem um final definitivo à vista. Por causa dessa ausência de fim, é também um ambiente em que as soluções dos problemas são provisórias e o confronto de potências titânicas que ameaçam a integridade do próprio planeta é contínuo.

Sandman se passa no cenário ficcional da DC Comics, mas também rompe de maneira interessante com o universo costumeiro dos super-heróis: embora os conflitos continuem a ocorrer, existe uma resolução final. Como Gaiman prenuncia na edição 6: “Todas as histórias de Bette têm um final feliz. É que ela sabe onde parar. Ela percebeu o grande problema das histórias. Se forem longas demais, sempre acabam em morte”.

A história de super-herói tradicional alonga os conflitos, e nenhuma morte pode ser considerada definitiva: ressurreições miraculosas fazem parte do cotidiano tanto de heróis quanto de vilões. Entretanto, as pessoas comuns que vivem e perecem nesse mundo, sobretudo quando a morte delas é fruto do embate entre seres de poderes descomunais, dificilmente têm a mesma regalia.

Assim, quando um ser divino – ou mais que divino – morre nesse tipo de mundo, além de participar de um acontecimento singular, ele se aproxima ainda mais do humano – como no caso de Morpheus. Gaiman tira o véu apolíneo que o cenário narrativo dos super-heróis oculta, que é a essência trágica da existência.

*Doutorando em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Viveu mais de dois anos na companhia dos Perpétuos durante o mestrado, defendendo uma dissertação sobre Sandman. No doutorado vai além do Sonhar e se prepara para entrar no Supercontexto com uma pesquisa sobre Os Invisíveis de Grant Morrison. Alguns de seus trabalhos acadêmicos sobre quadrinhos e literatura podem ser vistos em http://ufes.academia.edu/AttilaPiovesan.

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