“Não esqueça minha Caloi. Cooompre Baton. Toda a criança tem a Estrela dentro do coração. Desperte o tigre em você. Venha para o mundo de Toddynho.” É impressionante como boa parte da minha memória de infância é preenchida por mensagens publicitárias. E nem todas sobre produtos infantis.
Desde que a Publicidade se apropriou do conhecimento sobre o comportamento humano, a propaganda tem presença constante em nosso cotidiano. Já nos primeiros dias de vida, recebemos estímulos para reconhecer padrões de som e imagem que serão associados a sensações de alegria, conforto, segurança, etc. E, em cada fase da vida, receberemos estímulos especialmente projetados para nós, de modo que sempre teremos certeza da marca mais indicada para atender nossa necessidade/vontade de consumo. O consumo, aliás, é parte indispensável da nossa felicidade muito antes de existir propaganda.
Geralmente pensamos a felicidade como uma categoria espiritual/emocional e, possivelmente por isso, ignoramos retoricamente sua dimensão material. Afinal, comida, bebida, roupas, cama, casa, tudo isso é material e, convenhamos, é muito difícil ser feliz sem o minimamente necessário dessas coisas, a não ser que você seja um eremita, isolado do mundo e de todos. (Mas você não é, ou não estaria lendo isto). A propaganda passa a existir a partir do momento em que há alguém interessado em convencer você de que o consumo de um produto/serviço terá maior efeito na construção de sua felicidade do que outro, similar ou não. E isso surgiu ainda em tempos pré-históricos, quando os primeiros mercadores se especializaram em vender coisas que ninguém realmente precisava, mas que pareciam muito interessantes.
Até o século XIX, a propaganda se resumia a dois canais: o próprio produtor/vendedor e o boca-a-boca. O advento da indústria como conhecemos hoje (produção em massa para consumo de massa) tornou esses modelos insuficientes para a necessidade de expansão do mercado consumidor. E logo surgiram os anúncios em cartazes, jornais, revistas. Quando surgiu o rádio, logo veio a propaganda radiofônica. As grandes indústrias contrataram profissionais especializados em divulgar seus produtos para as massas e a Publicidade começou a ganhar contornos de ciência. Então, vieram o cinema e o merchandising. E a televisão seguiu pelo mesmo caminho. E foi nos meios-de-comunicação de massa que se descobriu o poder da propaganda voltada para crianças.


Em outro momento, fiz referência a um processo de adultização da criança. A publicidade infantil ajudou a construir essa realidade ao convencer a criança de que ela pode escolher o que consome. A grande responsabilidade, no entanto, permanece no mundo adulto. Nos deixamos encantar pela desenvoltura com que as crianças se movem pelo mundo da tecnologia e da informação, acreditamos que elas amadurecem mais cedo. Mas nos esquecemos de algo essencial: uma criança saber programar a TV digital, navegar na internet, usar um tablet ou smartphone melhor do que nós, adultos, não é a mesma coisa que ela estar pronta a tomar decisões racionais sobre estudo, relacionamentos, sexualidade ou consumo. Confundimos a nossa ignorância diante deste mundo de maravilhas tecnológicas com uma sabedoria inata nas crianças e demos a elas o poder de decidir, sem que elas estejam prontas para a responsabilidade.
Longe de querer decidir quem tem razão nessa briga (anti-publicidade infantil x pró-publicidade infantil vigiada x pró-publicidade infantil livre), o que quero pensar é o alcance que esse debate sobre a influenciabilidade da criança tem sobre o mercado de quadrinhos. E é impossível fazer isso sem citar uma figura particularmente infame entre os nerds mais velhos: o psquiatra teuto-americano Fredric Wertham.



O sistema de classificação não é totalmente ruim. Embora Wertham estivesse muito errado em ver tudo o que via nos quadrinhos, a mídia em geral exerce mesmo forte influência sobre o comportamento humano, especialmente de humanos em formação, ainda que não seja forte o suficiente para moldar integralmente o caráter de uma pessoa normal. Se não fôssemos todos influenciáveis em alguma medida, o nerdismo como conhecemos hoje sequer seria possível. (Ninguém me convence de que a tal “cultura nerd’” não seja fruto de uma bem-sucedida campanha de marketing). O cineasta Michael Haneke já demonstrou com suas duas versões de Violência Gratuita (Funny Games, 1997, e Funny Games US, 2007) que a mudança no grau de exposição à violência (real e/ou cinematográfica) levou o público a reações muito diferentes ao que é essencialmente o mesmo filme. Se a mesma barbárie que chocou a platéia em 1997 é recebida com relativa indiferença dez anos depois, Haneke tem certeza de que o que mudou foi o público. Não é a mesma coisa que alguém entrar atirando num restaurante depois de ter visto isso num filme (isso só acontece com pessoas que já estão fora da realidade, felizmente), mas é um importante indicativo de quanto nossa visão-de-mundo é influenciada pelo conteúdo midiático.

O problema é que o sistema de classificação não funciona de verdade. No máximo, ele impede o acesso da garotada a certos conteúdos em espaços controlados, mas sempre há maneiras irregulares de se conseguir isso, especialmente em tempos de internet. Isso está longe de ser o maior problema da classificação, porque, por mais que o acesso hoje seja fácil, a molecada ainda sabe que está cometendo um certo grau de transgressão e, no fim das contas, a intenção é mesmo deixar claro que há conteúdos indicados para certas faixas etárias. A maior fragilidade do sistema de classificação está, de verdade, na facilidade com que os produtores de conteúdo conseguem mudar a classificação apenas pela alteração de imagem/texto, sem que o conceito seja realmente pensado para o público mais jovem.

Isso nos leva de volta ao tema da publicidade infantil. Na virada de março para abril, enquanto os grandes canais da mídia (menos os quadrinhos) se dedicavam à memória do golpe militar, um outro debate importante se desenrolava no meio político: a proibição ou liberação da publicidade infantil. Optamos por proibir (ou os políticos optaram — uma das nossas esquizofrenias é que Estado e nação nem sempre concordam). A intenção da proibição é, a meu ver, positiva: tentar impedir que o consumismo infantil se propague. O texto oficial fala em impedir abusos, de modo que a publicidade seja dirigida aos pais, não à criança. Na prática, ele veta tudo o que conhecemos como estratégia de propaganda de produtos infantis em todos os canais de comunicação-de-massa, inclusive gibis. Também impede a associação de brinquedos e personagens a promoções de consumo de qualquer espécie.

No mercado brasileiro de quadrinhos, uma série de fatores me leva a crer que o caso é realmente de sobrevivência. Se considerarmos todo o investimento necessário para se conseguir licenças de publicação, impressão, pessoal qualificado para tradução e revisão (que tem sido sofrível ultimamente), distribuição e mais o famoso custo-Brasil, o licenciamento de produtos e a negociação de páginas de publicidade dentro das revistas se tornam essenciais para que o preço de capa não se torne absurdo. Aliás, a redução do volume de páginas publicitárias dentro dos gibis nos últimos anos, embora colabore para termos uma revista mais limpa, também ajudou a tornar nosso passatempo favorito mais caro. É relativamente fácil gastar 50-60 reais numa única passagem por uma livraria/revistaria decente, sem nem levar os encadernados.
É claro que também precisamos considerar as margens de lucro (que aqui parecem ser mesmo mais altas do que em qualquer lugar do mundo). Se nós, consumidores regulares de quadrinhos, boicotarmos as revistas por causa de seu alto preço, é bem possível que as editoras revejam seus custos e margens. Mas também há o risco (e, dada a índole do empresariado brasileiro, é quase certo que será o caminho adotado) de que essa redução de preço seja feita à custa da qualidade do gibi, que por aqui já não costuma ser grande coisa. Estamos falando de tradução ruim (o que já é realidade), impressão ruim, papel ruim, distribuição ruim. (Ou talvez a palavra mais indicada seja “pior”, porque muita coisa já é significativamente ruim aqui). Estamos dispostos a pagar esse aumento de preço ou redução de benefício?
Não, não tenho uma boa resposta para todas essas questões. Minha preocupação aqui é só lançar uma série de provocações: De quem é a verdadeira responsabilidade pelo consumismo infantil? Quanta justiça/ignorância/hipocrisia existe na classificação de conteúdo por faixa etária? Quão conveniente é para nós, consumidores regulares de quadrinhos, que as crianças continuem expostas a conteúdos e produtos dessa indústria?
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