
A influência das histórias-em-quadrinhos na vida dos leitores pode ir muito além de algumas horas de diversão. Você pode encontrar pistas para resolver o grande quebra-cabeças da sua existência, ser introduzido a novas possibilidades de leitura-de-mundo ou, ainda, encontrar respostas para questões mais mundanas.

Por uma dessas coincidências da vida, escrevo este post no Dia Internacional da Mulher. A intenção não é propriamente fazer uma reflexão sobre a data ou sobre protagonismo feminino nos quadrinhos, mas é interessante que a personagem em foco seja, de fato, uma das mais bem-construídas figuras femininas dos
fumetti e, provavelmente, em toda a produção mundial de quadrinhos.
Julia Kendall talvez não tenha a mesma força no mercado brasileiro que
Tex ou
Zagor, seus colegas veteranos de
SBE (Sergio Bonelli Editore), mas conseguiu arregimentar um bom número de leitores fiéis. E com mérito.

Fazendo uma apresentação bem rápida da personagem,
Julia Kendall é uma criação de
Giancarlo Berardi para a SBE, atendendo à necessidade de substituir a série
Ken Parker, escrita por ele mesmo desde 1977 e encerrada em 1998, e a um pedido da editora para que escrevesse uma série policial. Para o papel principal, Berardi usou a imagem de Audrey Hepburn, mulher fisicamente frágil e de traços muito delicados, mas deu-lhe uma personalidade forte, convicções liberal-humanistas e uma combinação de dedução e intuição que a tornam um dos recursos mais valiosos no combate ao crime na fictícia
Garden City, NJ. (Sempre achei curioso que os grandes quadrinistas

italianos não se preocupam em ambientar suas histórias na Itália — talvez devêssemos pensar melhor sobre isso aqui). Além da atuação como investigadora da Promotoria e professora universitária,
Julia vive o conflito entre a convicção de que deve ser independente e o desejo de formar uma família. Segundo a SBE, a complexidade e o realismo da protagonista explicam por quê
Julia tem uma aceitação tão grande pelo público feminino em comparação com outros títulos policiais.

O título da revista aqui é quase uma tradução direta do original italiano, com uma grande diferença: na Itália, destaca-se na capa o nome
Julia, enquanto aqui é o subtítulo
Aventuras de uma Criminóloga que fica em evidência. Não ajuda muito, mas é melhor do que ser confundido com a popular série
Júlia (que é algo do tipo
50 Tons de Cinza antes do raio gourmetizador). Publicada no Brasil desde 2004, a revista esteve ameaçada de cancelamento por duas vezes e só sobreviveu graças a uma intensa
campanha de propaganda feita pelos próprios leitores, que aumentou significativamente as vendas. Ainda assim, há alguns meses, a publicação deixou de ser mensal para se tornar bimestral.

Para compensar, as revistas agora vêm com duas histórias completas. E é claro que isso torna o preço mais alto, mas é possível que essa seja a única forma de manter a publicação viável por aqui. (O velho problema do <vende pouco porque é caro> x <é caro porque vende pouco>. Ou talvez seja o olho grande dos empresários mesmo).


A última edição de
J. Kendall: Aventuras de uma Criminóloga (#115, março 2015) trouxe uma notícia interessante: em maio de 2014, a seção italiana da
WAWFE (
Worldwide Association of Women Forensic Experts) fez a entrega do primeiro
Prêmio Científico Jovem Julia Kendall. O prêmio é entregue a especialistas abaixo dos 33 anos que se destacam na ciência forense italiana (homens e mulheres, apesar da associação ser feminina). Segundo Anna Barbaro, presidente mundial da WAWFE, o nome do prêmio é também um reconhecimento da contribuição da série no despertar do interesse dos jovens italianos, principalmente as moças, pela Criminologia.

O prêmio
Julia Kendall é um caso interessante e relativamente raro de uma história-em-quadrinhos que se torna uma referência para o público em sua relação com o mundo real. É verdade que, desde que
Wertham publicou seu infame estudo, a produção de HQ no mundo fez muitos esforços para convencer principalmente os adultos de que gibis podem ser uma boa influência para a juventude, mas, fora a participação do
Capitão América e da
SJA na II Guerra Mundial (pré-Wertham) ou a luta do
Superman contra a KKK (no rádio), você dificilmente vai encontrar um caso em que personagens de HQ efetivamente levem uma parte significativa do público a tomar uma decisão quanto ao rumo a ser dado na vida.

A criação do prêmio
Julia Kendall reflete uma série de coisas. A mais importante é a
escassez de referências reais (em termos de conhecimento pelo grande público) que sirvam de incentivo ao ingresso de mulheres na carreira da Criminologia e nas ciências como um todo. (Mas esse tema foge tanto da nossa proposta quanto da nossa capacidade — pelo menos da minha. Ficam, é claro, nosso reconhecimento de que essa é uma questão importante e o convite para alguém mais gabaritado abrir o debate). Outra questão é o alcance que uma obra ficcional pode ter quando é bem concebida e executada.

Para escrever
Julia, Berardi fez um trabalho muito cuidadoso de pesquisa, que incluiu assistir aulas no curso de Criminologia no Instituto Médico Legal de Gênova e muitas leituras sobre o sistema policial, legal e penal norte-americanos, além de Psiquiatria, Psicologia e Feminismo (não que
Julia seja um quadrinho panfletário, mas a construção da personagem é uma defesa muito clara e equilibrada do direito feminino à cidadania plena — algumas amigas feministas, ainda que com algumas ressalvas, se sentem bastante à vontade com a leitura). Além disso, Berardi faz mudanças de ritmo muito naturais dentro da história, equilibrando ação, drama, suspense e romance, dentro de uma atmosfera de plausibilidade que é um tanto incomum em quadrinhos. E, muito embora apenas
Julia tenha um grau realmente elevado de exposição que vai além do aspecto profissional, temos uma percepção muito clara de que estamos diante de pessoas reais, complexas.

O grande mérito de Julia é apresentar ao público uma Ciência Forense real, em que a tecnologia só produz resultados porque é operada e interpretada por pessoas. A comparação inevitável é com CSI, que até faz um bom trabalho de construção do background das personagens principais, mas tem o defeito de fazer parecer que a tecnologia é a responsável pela solução dos crimes, não a ação humana de análise e interpretação das evidências. Então, CSI pode até ser mais divertido, pode atrair curiosos, mas não dá ao público a perspectiva humana que se encontra em Julia. Por esse motivo, é Julia, não CSI, que torna a Ciência Forense uma possibilidade a ser considerada com seriedade por alguns jovens italianos.

Não estamos advogando que os quadrinhos sejam produzidos para sugerir aos leitores o quê fazer da vida. O propósito dessa indústria vital continua sendo a diversão. É claro que diversão e reflexão podem andar juntas e devem fazê-lo sempre que possível (ou este blog não existiria). A questão é que, segundo a WAWFE constata em
Julia, a reflexão a partir dos quadrinhos não se limita a questões morais, filosóficas ou políticas, mas pode, em algum momento, também lançar pistas em torno de aspectos mais objetivos da nossa vida. Afinal, a função da figura heróica é exatamente inspirar pessoas e em nenhum lugar está escrito que esse posto não possa ser ocupado por uma mulher real, ainda que ela só exista em papel e tinta.

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Sobre Quotista
Filipe Makoto Yamakami é historiador, professor, músico amador, twitólatra, monicólatra, etc.
E realmente precisa de um emprego que lhe permita pagar as contas.
@makotoyamakami
Excelente texto e pesquisa. Infelizmente Júlia chegou às bancas brasileiras numa fase em que eu não estava mais consumindo quadrinhos, retomei esse hábito recentemente e acabei não colecionando.. conheci alguns exemplares e me encantei. É uma personagem muito rica e acho uma referência ótima para o público em geral, sobretudo o feminino.
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