Dê o Play para uma trilha sonora apropriada à leitura
O que é a Loucura? Podemos procurar definições em diferentes lugares.
Tem no Dicionário:
loucura – lou.cu.ra sf (louco+ura2) 1 Estado de quem é louco. 2 Med Desarranjo mental que, sem a pessoa afetada estar ciente do seu estado, lhe modifica profundamente o comportamento e torna-a irresponsável; demência; psicose. 3 Ato próprio de louco. 4 Insensatez. 5 Aventura insensata. 6 Grande extravagância. 7 famAlegria extrema, diabrura: Loucuras das crianças. 8 fam Propensão excessiva; mania: Loucura pelo futebol. 9 fam Despesa desproporcionada.Antôn (acepção 4): siso.
Tem em livros acadêmicos:
A crermos em muitos pensadores contemporâneos, a loucura não é um fenômeno fundamentalmente oposto ao da chamada racionalidade ou normalidade. A loucura é interior à razão — eis uma proposição notável muitas vezes posta sob suspeita, tão espantosa que se resiste a aceitar. Se a loucura é algo com que convivemos, paradoxalmente é algo difícil de se falar na primeira pessoa. Fácil é falar do outro, da loucura alheia. Da loucura do outro? Na fala cotidiana (ou no discurso científico), são-lhe emprestadas tantas vestes que ela se mostra a nós disfarçada de certa maneira. Essa aparência da loucura é a visão que se tem do louco, visão cujo sentido de máscara é o que vou tentar apontar neste livro. Mas, concretamente, de que visão se trata? (João A. Frayze-Pereira, “O que é a Loucura?”, 1984)
E tem na essência do Batman.
Para quem já leu Batman – Asilo Arkham, com roteiro de Grant Morrison e arte de Dave McKean (e letras de Gaspar Saladino, que só podem ser conferidas no original em inglês), a loucura tem uma proporção um pouco mais inquieta e mais tangível. Os traços são sedutores, mas ao mesmo tempo inquietos. Às vezes há linearidade no grid dos quadrinhos, mas por vezes não. O texto conversa com inúmeras referências e exige do leitor uma certa sagacidade e perspicácia para absorver tudo.
A nona arte se expressa em plenitude. Os artistas envolvidos tem a sua identidade mostrada e demonstrada. A dança entre texto e imagem é sincrônica, como um balé no qual o casal principal, Batman e Coringa, tece metáforas e sensações com seus corpos. O traço e as falas são assim, colocados de uma maneira tensa, de uma maneira inquieta. Por isso coloquei a trilha do Zimmer na abertura para você dar o play, ao mesmo tempo que ela é calma, te deixa em suspensão.

Duas páginas que narram a conversa entre a médica e o morcego. Um simples jogo de palavras no qual cada traço importa
É aqui que podemos entender porque podemos comparar Grant Morrison com Alan Moore. São genialidades até parelhas se compararmos o exercício mental que fazemos nessa história com o exercício que fazemos ao ler um Watchmen, por exemplo. Claro que cada um à sua maneira e intenção. Se tiver curiosidade para compreeder estes e outros casos, veja alguns dos nossos vídeos da Guerra de Roteiristas.
Mas voltemos à tônica que me instigou a escrever. O quadrinho nos impulsiona a refletir que todo ser humano tem em si uma dose dessa ausência de “normalidade”. Esse é um passo para aumentar a nossa própria loucura, que por sua vez nos põe em par com a nossa sanidade. Se olharmos para o caso por exemplo de Nietzsche, vemos como ele argumenta que a maior elevação do ser humano é romper com a lógica cartesiana e positiva (de acordo com ele, platônica e socrática).
Esse rompimento é assumir a loucura ou nos torna sobre-humanos (o übermensch, além-homem)? Justamente aí que compreendo que de fato o Batman é um super-herói. Como vemos em algumas passagens do quadrinho, o indivíduo é torturado mentalmente por diversos de seus oponentes, mas apenas o Croc Assassino o ataca fisicamente. Esse momento é uma referência à disputa entre o Arcanjo Miguel e Satanás, que já havia sido citada quando a história de Amadeus Arkham está sendo contada.
Essa alegoria é interessante por justamente jogar no campo religioso e místico os embates. A loucura pode ser vista através da obsessão de Amadeus Arkham em eliminar o mal, que de acordo com alucinação de sua mãe, é o morcego. São representações duplas e inversas: enquanto Batman representa a plena ordem divina, o Arcanjo “Principe das Milícias Celestes”, seus inimigos representam o caos completo e nefasto, a serpente que seduz Adão e desvirtua os humanos. Mas na mente de Arkham é o oposto, pois é o morcego que seria essa encarnação do mal.
Morrison define dessa maneira um Batman louco, mas por sua extrema lucidez. A sua saída e conclusão da história é justamente de que é preciso essa desvinculação com uma ordem estritamente lógica. O mesmo é visto no seu nêmesis, o Coringa. Esses dois pesos é que devem existir para manter a ordem em Gotham. Por isso o fiel da balança acaba sendo o Duas Caras, ao retornar à sua própria condição original. Ambos os pesos são iguais, afinal o Batman não é o que Gotham quer, mas sim o que Gotham precisa.

No momento que a doutora Ruth Adams explica o tratamento que supostamente levaria o Duas Caras à “normalidade”
O homem morcego é a personificação da dominação da pura alucinação. Mesmo quando é levado a um estado que poucos conseguiriam sair, ele toma as atitudes necessárias e as supera, mesmo que isso lhe renda um ferimento. Ele vai além das suas capacidades convencionais para poder defender aquilo em que acredita. Ele se torna um mito, um vulto. Ele é o responsável pela sua cidade e pelos problemas, tanto enquanto causa como enquanto solução.
O “super” do Batman é a sua humanidade.
(Nota de antecipação: Muitos outros temas poderiam ser discutidos na mesma obra. Fui arbitrário ao discutir estes, desta maneira)
O texto tá sensacional, ow. Ainda não li o Asilo Arkham mas tô com mais vontade agora, maldade!
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