Cinco motivos para assistir Hunters

Em tempos de coronavírus te damos cinco motivos pra sentar no sofá e se cuidar.

Em tempo de COVID-19 tamos cercados tanto de gente eminente como picaretas sub-informados nos aconselhando a ficar quietinhos, lavar as mãos e buscar obras benfazejas pra ocupar o tempo. Quando ambos concordam, é hora de dar ouvidos.

Não que faltassem razões pra ficar em casa, uma sugestão meio tardia mas ainda válida é Hunters, série de dez capítulos quem tem Al Pacino como líder de um implacável esquadrão de caçadores de nazistas em Nova York nos anos 70.

Se você já viu, vamos debater. Se você não viu, indico cinco motivos pelos quais Hunters deve compor sua lista de obras indispensáveis.

 

1. As referências sobre quadrinhos

O astro da série é Jonah Heidelbaum. Interpretado por Logan Lerman, Jonah  (“Jonas e a baleia”, entendeu?) é um adolescente medroso e fã ortodoxo de quadrinhos. Ao início da série ele divide seu tempo entre trabalhar numa comic shop e traficar drogas para vizinhança. Após uma tragédia – atrevidamente parecida com a de Peter Parker – Jonah é recrutado por Meyer Offerman (Al Pacino). Na caçada aos nazistas, Jonah reconhece uma transposição para a vida real aquelas histórias que conhece tão bem.

Dali pra frente existem pencas de referências a quadrinhos. As mais evidentes são sobre Batman. Nada discreto, Jonah pergunta se Meyer é um tipo de Bruce Wayne. Mais tarde, o próprio Meyer se refere à mansão em que o grupo planeja os ataques como “batcaverna”. Aconselha Jonah a ler o Pentateuco, “os quadrinhos originais”.

A aproximação não traz nenhuma novidade. Mais do que manjado, os principais autores de quadrinhos da Era de Ouro e Prata (1938-1963) eram judeus. Foi gente como Joe Schuster e Jerry Siegel (criadores do Superman), Bob Kane e Bill Finger (criadores do Batman), Stan Lee, Jack Kirby, os “pais” de praticamente todos os grandes heróis da Marvel. Isso sem falar em Marv Wolfman, Gene Colan, Peter David, entre tantos outros autores judeus de sucesso na indústria de quadrinhos.

Pra quem é atento, a mensagem é clara: não é por acaso que o nazismo e o fascismo são a maior força de antagonismo dos heróis de quadrinhos.

 

2. As referências ao cinema pop

Impossível esconder, Hunters é um misto de influências do cinema. Gêneros como o “blaxploitation”, o “nazisploitation”, típicos dos anos 70, são mediados por alusões a Star Wars e Tubarão.

Ao integrar a equipe de caçadores, Jonah é apresentado a cada membro em cortes cuspidos dos filmes de Quentin Tarantino, em especial, Kill Bill e Bastardos Inglórios.

O grupo é composto por uma variedade de clichês, portanto símbolos tanto do cinema como do tempo que se retrata na série. Há Roxy Jones (interpretada por Tiffany Boone), militante do movimento negro, Murray e Mindy Markowitz (Saul Rabinek e Carol Kane), sobreviventes de Auschwitz, Lonny Flash (Josh Radnor), um ator de filmes B em negação, Joe Mizushima (Louis Ozawa), um veterano da guerra no Vietnam, e a irmã Harriet (Kate Mulvany), uma freira com obscuras relações com o serviço secreto britânico.

Provocação disfarçada de naturalidade, na diversidade do grupo, cada um soma um tipo de habilidade ligada à sua origem. Isso desafia o espectador a antecipar expectativas e reconhecer os próprios preconceitos. O episódio 5 (“A noite todos os pássaros são negros”), escancara essa provocação e enumera cada uma das grandes falácias associadas aos judeus de forma caricata e, por isso mesmo, brutal, como as inúmeras cenas de violência da série.

 

3. As memórias dos anos 70

A ambientação da série não podia ser outra. Ao final dos anos 70, muitos dos antigos nazistas que haviam conseguido escapar dos tribunais de Nuremberg e Jerusalém estavam vivos. Não só isso, muitos tinham sido devidamente “convidados” para os Estados Unidos na operação Paperclip, eram ativos e, para fins dramáticos, letais.

Um destes “ex-nazistas”, figura real e também presente na série, foi Wernher von Braun, criador dos foguetes nazistas V2, e que anos depois seria um dos maiores responsáveis pela criação dos foguetes das missões Apolo, que levaram o homem à Lua.

Kennedy e von Braunn em 1963

O enredo da série envolve uma conspiração internacional, o apoio americano a ditaduras na América do Sul, armas químicas, anticomunismo, luta por direitos humanos, civis e sociais. São temas que enchem o prato de qualquer aula de história Estados Unidos  nos anos 70. Por meio da memória evocada pela série estes temas são revividos, mas sem qualquer compromisso com os fatos. E este é justamente o ponto mais interessante da obra.

4. As memórias do Holocausto

Hunters é uma obra criada por David Weil, neto de uma sobrevivente de Auschwitz. Diferente do trabalho de historiador (que não pode afirmar absolutamente nada que não possa provar), o artista é livre para recriar eventos e manipular os temas da forma como melhor convém ao enredo. E Weil recria essa memória com um descuido intencional. Conforme afirmou em entrevista para o Comic Book Resources,

Em vários filmes sobre o Holocausto sinto que os judeus são frequentemente mostrados como as vítimas. E eu acho que na mídia nós somos retratados exclusivamente como intelectuais, tímidos ineficazes como Woody Allen e coisas assim. Eu quis criar um modelo na tela que fosse emblemático, pra mim, dos judeus. Judeus poderosos, judeus fortes, heróicos, casca-grossas. E eu acho que eu quis contar essas histórias – e a série conta – não apenas os judeus sofrendo durante o Holocausto, mas também [sobre] a força e revolta deles.

Nesse sentido, como se para despertar o sentimento de repulsa aos nazistas, Weil foi generoso. No primeiro capítulo da série, Meyer relembra um episódio aterrorizante vivido nos campos de concentração. Um célebre jogador de xadrez, judeu e prisioneiro, é desafiado por um dos algozes do campo. Ao invés das pedras e um tabuleiro, o nazista usava outros prisioneiros como peças. A cada movimento, o oponente se via obrigado a sacrificar suas “peças”, assassinadas de forma inumana por soldados nazistas. A representação foi rapidamente desmentida por Pawel Sawicki, porta-voz do Memorial Auschwitz-Birkenau.

Isso é falso, não houve tal coisa”, afirmou Sawicki para a Associated Press. No Twitter, o Memorial publicou uma manifestação sobre a série no dia 23 de fevereiro.

“Auschwitz foi repleta de dor e sofrimento conforme documentado pelos sobreviventes. Inventar um jogo de xadrez humano para @huntersonprime não é apenas perigoso e cartunesco. Isso também convida futuros negacionistas. Nos honramos as vítimas preservando a acuidade factual.”

Weil admitiu que a forma que escolheu para representar os absurdos dos campos de concentração, de fato, foi ficcional. Para o site Variety, o autor buscou esclarecer:

Por que senti que essa cena era necessária na série? Para rebater a narrativa revisionista que atenua os atos nazistas, para mostrar as mais extremas – e representativamente fieis sadismos e violência que os nazistas perpetraram contra os judeus e outras vítimas.

5. A metalinguagem da vingança

O Holocausto, o assassinato sistemático, organizado e burocrático de cerca de seis milhões de judeus pelo governo nazista, não é só um tema obrigatório de aprendizagem. Nem apenas objeto de pesquisa histórica. O genocídio praticado pelos nazistas tornou-se um item de disputada atenção dos mais variados olhares, de diferentes interesses nas décadas que vieram após o fim da 2ª Guerra Mundial. O Holocausto, afinal, evidenciou o que a humanidade é capaz quando sucumbe aos seus piores impulsos, rancores, medos e preconceitos.

O cinema se tornou um dos campos mais privilegiados destes interesses. Ajudou a criar uma consciência coletiva sobre aquela tragédia. Antes de qualquer professor de história abrir a boca, é difícil encontrar aluno do ensino básico que não saiba quem são os piores inimigos do Capitão América ou do Indiana Jones. Quase impossível encontrar quem não tenha jogado mil partidas de videogame desembarcando na Normandia, que não tenha massacrado hordas virtuais de nazistas. O ódio ao nazismo virou uma espécie de lugar comum, um ponto de fuga legítimo, inclusivo e aberto a todos de se legitimar a violência. Dito de outra forma, o ódio ao nazismo virou um ótimo produto. Isso pode explicar a mera existência de uma série como Hunters.

Porém, em que pesem os excessos que os autores de Hunters possam ter cometido, a série insinua um objetivo oculto, o de colocar este ódio em teste. Na superfície, a série convida você a se deleitar com o sofrimento dos nazistas fugitivos, a se lambuzar na mais desculpada violência contra os alvos de Meyer Offerman. Mas nas entrelinhas, a meta parece outra: a série desafia você a não sentir raiva dos nazistas. A não ceder à sede da revanche. E este é o dilema de Jonah, assombrado pela ética singular da avó.

Ao longo da série há diversas reviravoltas, mas essencialmente a narrativa é conduzida pela busca de Jonah ao impasse que sua vida se tornou, uma dúvida que tantas vezes foi mote de histórias em quadrinhos. Existe diferença entre justiça e vingança? Assassinar nazistas não faz dele alguém idêntico ao que odeia? A resposta da série talvez seja bem clara, desde o primeiro episódio. Ao sair da sessão de cinema de Star Wars, junto dos amigos, Jonah comenta:

[Darth] Vader não acorda todo dia ansioso por destruir a galáxia. Ele acorda toda manhã acreditando que precisa salva-la. A única diferença entre um herói e um vilão é quem vende mais fantasias no Halloween.

Alguma dúvida?

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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