A jornada do Herói e o ventre da baleia

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Porque este é o coração das melhores histórias.

Se você gosta de histórias (e estórias), uma das experiências mentais mais inebriantes é descobrir pela primeira vez uma coisa chamada “a jornada do herói”, ou monomito. Se você já leu este blog, já viu algum vídeo ou assistiu alguma das nossas palestras, sabe que a jornada já é quase um senso comum, formulado por Joseph Campbell.

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Se você não conhece, pra resumir, a jornada do herói é uma espécie de fórmula para contar histórias, onde o protagonista percorre certas etapas num percurso cíclico, da partida da sua terra natal, passando por um “mundo” inferior assustador, até retornar para o ponto de origem, o “mundo” comum. Ao percorrer este percurso o herói abandona seu conforto infantil, vive aventuras que o fortalecem, descobre amigos, mestres e mistérios, além de revelar quem é o seu antagonista, algoz da existência do herói e cuja possível derrota pode revelar uma verdade sobre ele mesmo.

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Não tenho dúvidas que, ao ler isso, você lembrou de algum livro, filme ou HQ que segue essa fórmula. O que varia é quanto espaço que o autor da narrativa dá para cada uma das etapas do monomito.

Muitas vezes, certas obras são mais lembradas por determinados momentos da narrativa, normalmente os lances finais, cenas de batalha, aquela marretada definitiva no vilão. É a etapa da provação suprema. É natural lembrar mais deste momento: a realização promovida pelo herói é uma projeção da nossa própria satisfação de ver, ao menos na ficção, a justiça (ou vingança) sendo servida com vigor.

Aqui reside uma dúvida: talvez, apenas talvez, a etapa da provação seja mais lembrada por leitores mais jovens. Sei lá por quê (talvez porque os cabelos brancos estão aumentando) de todas as fases do monomito, o ventre da baleia me parece a melhor e mais rica de todas as etapas da narrativa.

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Veja, a etapa do ventre da baleia é o momento em que o herói alcança o ponto mais baixo da sua trajetória. Ele está enfraquecido, ferido, isolado, deslocado de tudo que conhece, despojado de todas as suas armas, seus instrumentos, até mesmo do seu próprio nome. Ali, naquele ponto, ele não é nada, ninguém, além de si mesmo, não tão diferente de quando era um recém-nascido. E é lá, no fundo do poço, onde reside o coração da história dele.

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Quando se referiu a esta etapa da narrativa como “ventre da baleia”, Joseph Campbell fez uma alusão à história de Jonas:

“E veio a palavra do SENHOR a Jonas, filho de Amitai, dizendo:

Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença.

Porém, Jonas se levantou para fugir da presença do Senhor para Társis. E descendo a Jope, achou um navio que ia para Társis; pagou, pois, a sua passagem, e desceu para dentro dele, para ir com eles para Társis, para longe da presença do Senhor.

Mas o Senhor mandou ao mar um grande vento, e fez-se no mar uma forte tempestade, e o navio estava a ponto de quebrar-se.” Jonas 1:1-4

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O navio estava a ponto de se quebrar porque, segundo a narrativa da Bíblia, Jonas se recusou a obedecer a ordem de Deus, de ir a Nínive, na Assíria, e pregar contra os vícios daquele povo. Estes, por sua vez, tinham o “costume” de empalar ou esfolar prisioneiros, algo do qual Jonas queria escapar a qualquer custo. A punição de Jonas por sua covardia (e desobedecer a Deus) foi ter sido lançado ao mar pelos marinheiros, assustados com a tempestade, para logo depois ser engolido por uma enorme baleia…

Lá, no fundo do mar, no ventre da baleia, depois de três dias, Jonas rezou:

“Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do inferno gritei, e tu ouviste a minha voz.

Porque tu me lançaste no profundo, no coração dos mares, e a corrente das águas me cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas têm passado por cima de mim.

E eu disse: Lançado estou de diante dos teus olhos; todavia tornarei a ver o teu santo templo.” Jonas 2:1-4

E ouvindo a epifania de Jonas que, mergulhado nas profundezas abissais, escolheu a esperança, Deus fez a baleia cuspir o profeta nas praias de Nínive para cumprir sua tarefa.

Papos carolas à parte, a narrativa de Jonas tem um apelo emocional difícil de resistir, não importa a religião, ideologia ou gênero. Trata-se de uma história de alguém que, ao tentar fugir de sua vocação, caiu em desgraça. E nessa hora, de escuridão, fez uma escolha.

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Aí está o eixo central desta etapa do monomito: o ventre da baleia é a celebração da escolha cega. Não há garantias de sucesso. Nem de fracasso. Há apenas um momento solene. Um intervalo do mundo. Uma caverna de si. Uma fração de silêncio. Um segundo de escolha.

Exemplos nos quadrinhos não faltam. Dependendo de qual Era (e autor), a etapa do ventre da baleia tem maior ou menor destaque, mas infalivelmente a etapa está lá.

É quando Norrin Radd aceita se tornar o Surfista Prateado para poupar seu planeta do apetite de Galactus.

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É quando Hal Jordan recebe o anel da Tropa dos Lanternas Verdes dado por Abin Sur.

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É quando o Superman escolhe não reagir contra a humanidade após ela ter massacrado quase toda a população meta-humana em Reino do Amanhã.

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Nos filmes de heróis nos últimos anos, a etapa do ventre da baleia é até ainda mais evidente do que nos quadrinhos. É fácil de lembrar os exemplos, mas entre uma série de razões, é quando o ritmo das cenas e dos cortes vão se tornando cada…

Vez…

Mais…

Lentos…

Até que:

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Talvez o melhor exemplo de exploração da etapa do ventre da baleia tenha sido na trilogia de Batman, de Chris Nolan. O filme Batman Begins, de 2005, parece ser uma narrativa contínua e exclusivamente sobre o ventre da baleia. Um enorme primeiro ato antes da grande sinfonia de O Cavaleiro das Trevas, de 2008.

Mas não só. O ventre da baleia, como recurso de evocação emocional do público, era evidente em Capitão América:

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Ou então no Homem-Aranha de Sam Raimi:

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Ou em O Homem de Aço:

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Pra mim, cena que jamais deixou tão escancarada a importância do ventre da baleia na narrativa foi essa aqui:

(e chuta o nome do herói)

Não importa qual história você tenha eleito como favorita, a mensagem, como disse Campbell, pode ter vários nomes, mas as perguntas são sempre as mesmas. Afinal, por que caímos? O que escolhemos ser? No que escolhemos acreditar?

Quando nada mais existe nem faz diferença, quem é você?

 

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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