Essa é a pergunta que Mark Millar e Frank Quitely nos convidam a fazer na obra que finalmente vai sair aqui no Brasil pela Panini!
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O Legado de Júpiter parte de um high concept interessante: como seria crescer tendo como pais o Superman e a Mulher Maravilha? A partir daí um dos temas que percorrem a história é o conflito de gerações, o tal legado de Júpiter, alusão ao deus máximo da mitologia romana. Mas é nessa alusão que a narrativa ultrapassa o conflito de gerações.
A escolha da mitologia romana já indica que o legado de Júpiter não é só o legado que um pai como o Superman deixaria para seu filho, mas dialoga diretamente com o legado dos Estados Unidos como nação, que muitas vezes é comparado ao de Roma para o Mundo Antigo. Nas palavras do próprio Millar:
“Como alguém que cresceu com a bandeira americana no quarto, nos últimos anos eu assisti do outro lado do Atlântico algo que eu pensei que jamais veria: pobreza nos Estados Unidos. Isso me tocou bastante porque muitos dos meus amigos que são fãs de quadrinhos ou freelancers me contaram histórias que eu jamais pensei que fossem acontecer, sobre como o posto de gasolina fechou porque ninguém mais tinha dinheiro para ter um carro. É um país que, ao crescer, eu sempre associei com coisas se tornando maiores e melhores, e vê-lo se contraindo é chocante. Isso serviu de inspiração para o pano de fundo da história. Os super-heróis são impotentes face à essa situação complexa, e é aí que a história engrena. (…) Talvez seja porque a Mulher Maravilha e o Superman vestem a bandeira americana. Me parece uma boa analogia associar o fim do império Americano com uma história do tipo crepúsculo [aqui fazendo referência à opera de Wagner, O Crepúsculo dos Deuses] dos super-heróis”.
É interessante ver como essas duas dimensões se imbricam na história. Brandon e Chloe são filhos de Utopian (o Superman) e Lady Liberty (a Mulher Maravilha). Dois jovens perdidos por não estarem à altura de seus pais, sendo mais celebridades do que propriamente super-heróis, culpando os pais por estarem ausentes durante sua infância, ao mesmo tempo que se sentem culpados por não estarem à altura deles.
Já Utopian e Lady Liberty culpam os filhos por não se comportarem como os super-heróis que deveriam ser e também por não estarem presentes na criação dos filhos.
Em um outro nível, a decadência econômica e social dos Estados Unidos é mostrada, refletindo a irresponsabilidade da geração de Brandon e Chloe e revelando a impotência da geração de Utopian e Lady Liberty frente à situação.
Comentamos brevemente (sem spoilers) a hq no vídeo abaixo:
***********SPOILERS ABAIXO***********
Nesse contexto, Brainwave, irmão do Utopian, propõe que os super-heróis interfiram na política e economia dos Estados Unidos com um projeto de economia planificada para salvar o país, clara alusão à União Soviética e ao comunismo. A proposta é rechaçada por Utopian, que acha que os super-heróis não devem interferir em tais questões.
Brainwave então acaba manipulando Brandon para que se rebele contra seu pai, o que culmina na morte de Utopian pelas mãos do próprio filho, momento mais freudiano de toda a narrativa.
Seguindo com Freud e o Complexo de Édipo, a mãe é o primeiro objeto de amor de todos os homens e o pai está lá como o grande obstáculo desse desejo. Quando introjetamos essa primeira regra, a de que nos é vetado nosso primeiro objeto de desejo, estamos também introjetando a primeira regra cultural: a proibição do incesto. Portanto, o pai simboliza também a primeira regra, a primeira sujeição do indivíduo à coletividade, à cultura. A primeira submissão.
Matar o pai – simbolicamente, é claro – é o momento em que superamos essas imposições sociais, momento de afirmação de quem somos como indivíduos. Mas claro que mesmo essa morte simbólica acarreta alguma culpa e essa culpa será um lugar de referência, a própria condição da cultura.
Se aceitarmos os paradigmas freudianos, a morte do pai é o momento em que nos tornamos adultos, aceitamos nossas escolhas e arcamos com a responsabilidade sobre elas. Ser incapaz de matar o pai significa em alguma medida essa recusa a tornar-se adulto, em ter responsabilidade sobre as próprias decisões. Ficar à sombra do pai, é, em alguma medida, recusar essa responsabilidade e trilhar o caminho que outra pessoa, e não você mesmo, escolheu para sua vida.
No caso de Brandon o reconhecimento de não estar à altura das expectativas do pai e a raiva que sente pelo seu abandono na infância culminam com seu assassinato real. Porém, ao cometer tal ato, Brandon troca a sombra do pai pela do tio, sendo ainda incapaz de escolher seu próprio caminho.
*******FIM DOS SPOILERS*******
Esse dilema também está colocado no campo histórico-político. Se os Estados Unidos saíram vitoriosos da Guerra Fria e a expansão do capitalismo pelo mundo tornou-se uma realidade com a globalização, isso não significa que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
É conhecido o adágio de que se você não é socialista aos 20 anos, você não tem coração, e se permanecer socialista aos 40, é porque não tem cérebro. Esse adágio foi criado pela geração de Utopian, e, se sua geração chegou aos 40 sem ser socialista, não foi sem depositar uma certa esperança na próxima geração para que resolvesse os problemas inerentes à essa escolha. Já a geração de Brandon é aquela que, sem utopias, aos 20 anos não era socialista, e sonha em ter um emprego estável e um casamento feliz, bem aos moldes dos desejos de seus pais e frustra-se duplamente: por não conseguir tal sonho e por perceber o quão limitado ele é.
Se Brandon ainda será capaz de encontrar seu próprio caminho – e o de sua geração – no decorrer na narrativa ainda não sabemos. O primeiro volume da hq não chega ao final na história e entre o primeiro e o segundo volume (ainda não terminado nos EUA) há dois volumes de prequência à saga: Jupiter’s Circle, volumes 1 e 2, que contam as histórias da juventude dos heróis da geração de Utopian.
De qualquer maneira O Legado de Júpiter é uma excelente alegoria dos tempos em que vivemos, ao abordar os problemas de uma geração que se mostrou incapaz de estar à altura das expectativas projetadas pela geração anterior – o legado de Júpiter – e também ainda não encontrou seu próprio caminho no mundo.
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