Entenda como O Legado de Júpiter, adaptação do quadrinho homônimo de Mark Millar e Frank Quitely, proporciona uma reflexão moral, ética e política.
Na série vemos o personagem Utópico, equivalente ao Superman, defender o que ele chamou de “O Código”, que tem duas diretrizes simples:
- Super-heróis não governam, mas inspiram
- Super-heróis não matam
Isso é justificado pelo Utópico, pois, dessa forma, os super-heróis, praticamente deuses sobre a Terra, jamais tentariam dominar o mundo.
Não só isso. Utópico diz que o Código é mais que um conjunto de valores, mas também um sistema de “checks and balances”, ou seja, freios e contrapesos. Isso remonta à Montesquieu e à ideia de que só o poder pode limitar o poder, que sua limitação deve ser assegurada para que a liberdade também o seja, cerne da noção da divisão entre três poderes seguida nas democracias: Legislativo, Executivo e Judiciário.
É no Código da geração de Utópico que os heróis têm seus valores, guiam suas ações e prestam contas à sociedade, limitando o próprio poder. Afinal, o que poderia impedi-los de dominar a Terra caso o quisessem?
Na série da Netflix, o Código é questionando quando o personagem Paragon (que poderia ser traduzido como Exemplar e aqui recebeu improvável nome de Magnético), filho de Utópico, mata o vilão Blackstar em batalha, quando este estava prestes a se tornar uma bomba nuclear.
Um dos pontos da série é o peso da responsabilidade sentido por Paragon em, um dia, substituir seu pai como guia moral dos super-heróis e aqui recupera-se, mais uma vez, o tema freudiano da busca/morte do pai.
A busca pelo pai é um tema arquetípico que se repete em diversas mitologias. O encontro do pai é o encontro com o próprio caráter e o caráter é o destino do herói. Portanto, quando o herói procura pelo pai, simbolicamente está procurando pelo próprio destino. Isso não sou eu quem digo e sim Joseph Campbell, um dos maiores estudiosos de mitologia que já existiu.
E não só Campbell. É o próprio Freud quem diz que “o destino, em última instância, não passa de uma projeção tardia do pai”. Portanto esses dois grandes pensadores estão de acordo com a importância do pai para a construção de quem somos.
Não é simplesmente a procura e o encontro. Seguindo com Freud e o Complexo de Édipo, a mãe é o primeiro objeto de amor de todos os homens e o pai está lá como o grande obstáculo desse desejo. Quando introjetamos essa primeira regra, a de que não podemos ter nosso primeiro objeto de desejo, estamos também introjetando a primeira regra cultural: a proibição do incesto. Portanto, o pai simboliza também a primeira regra, a primeira sujeição do indivíduo à coletividade, à cultura. A primeira submissão.
Matar o pai – simbolicamente, é claro – é o momento em que superamos essas imposições sociais, momento de afirmação de quem somos como indivíduos. Mas claro que mesmo essa morte simbólica acarreta alguma culpa e essa culpa será um lugar de referência, a própria condição da cultura.
Ao ver o próprio filho quebrar o Código, Utópico decepciona-se, e Paragon decepciona a si mesmo e frustra-se por não corresponder às expectativas do pai ao quebrar o Código.
Mas a questão é se Paragon fez ou não uma escolha ética ao quebrar a regra moral de não matar presente no Código.
Deixando de lado as abordagens filosoficamente mais ousadas sobre ética e moral (como as de Nietzsche, Foucault e afins) podemos dizer que moral é o conjunto de regras que determinam o comportamento dos indivíduos em um grupo. Já a ética é o ponto de vista particularizado diante dessas regras. Portanto, o agir ético pode implicar em atos ilegais e imorais.
Havia outra forma, como defende Utópico? Ou matar Blackstar era realmente o único modo de impedir um desastre nuclear que tiraria a vida de inocentes? Seria lícito a Paragon escolher não matar para preservar o Código ao custo das vidas de inocentes?
O fato é que Paragon fez uma escolha naquele momento, uma escolha ética, ainda que quebre a moral do Código e o valor universal da preservação da vida.
No decorrer da série Paragon compreende seu ato como um erro e volta a defender o Código, que sua geração vê como ultrapassado, permanecendo, portanto, na sombra do Pai. Digno de nota é o fato de que, numa espécie de sessão de terapia, Utópico descubra que a defesa incondicional do Código está ligada à sua relação com seu próprio pai.
Para além da dimensão ética/moral do ato, há a dimensão política. O assassinato de Blackstar por Paragon coloca em xeque o sistema de freios e contrapesos defendido por Utópico. Afinal, se agora heróis podem tirar a vida quando entendem que isso é necessário, o que os impedirá de subjugar vidas ao seu bel prazer e, no limite, governar o mundo?
É como se ao tirar uma vida não houvesse limite ao poder, e, ao não haver limite, abre-se o caminho para a tirania, para o despotismo. Se os heróis podem escolher tirar vidas, para que serviria, por exemplo, o sistema judiciário e noções democráticas como a presunção da inocência, o devido processo legal etc.? Os heróis deixam de prestar contas à sociedade, abrindo caminho, mais uma vez, para a possibilidade de governar o mundo de maneira despótica, autoritária.
Nessa primeira temporada, a série focou-se no conflito de gerações e na dimensão ética e moral do Código. No quadrinho no qual é inspirada, a discussão equilibra melhor essa dimensão com a questão política apenas vislumbrada, e que poderá ser melhor trabalhada numa eventual segunda temporada.
Proporcionar essas reflexões é o mérito de O Legado de Júpiter, ainda que seus efeitos especiais sejam dignos de uma produção da Televisa.
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