Marvel Comics: a história secreta – 10 observações para perder a inocência sobre quadrinhos

Lançado esse ano aqui no Brasil, o livro de Sean Howe, Marvel Comics: a história secreta (Marvel Comics: the untold story) pela Editora Leya é sem dúvida um livro que merece ser lido.

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É um livro ambíguo. Para alguém que se interessa pela história dos quadrinhos ou que acompanha as publicações sobre o mercado – o Comics Journal, por exemplo – o que está escrito ali não será novidade. Mas para um leitor que só acompanha os quadrinhos, sem se importar muito com a indústria, terá sem dúvida um material valioso nas mãos.

Sean Howe não tem um eixo central no seu livro, um método de análise, um procedimento específico. Vai narrando os fatos que julga interessante de forma aleatória. Ora dá atenção ao mercado de quadrinhos, ora observa os roteiristas e desenhistas, ora enfoca as histórias por eles narradas. Ficamos meio à deriva junto a Howe, que também termina o livro de maneira apressada. Somado aos problemas de formato, não ajuda em nada a péssima tradução feita por Érico Assis.

Ressalvas à parte, repito: apesar de tudo, História Secreta é um livro que deve ser lido. Lá você poderá ter uma visão do que a Marvel realmente é: uma empresa. E como qualquer outra está preocupada com o lucro – se o lucro vier acompanhado de qualidade tanto melhor, mas se um dos dois tiver que ser sacrificado não tenha dúvidas de qual vai ser. Também é interessante saber um pouco mais sobre as transformações do mercado de quadrinhos nos Estados Unidos e como ele funciona, o que pouco tem a ver com o mercado do Brasil.

Da minha leitura destaco 10 trechos e observações que achei interessante – que talvez não sejam exatamente novidades para um público mais experimentado no assunto, mas mesmo assim dignos de nota:

1) “Fãs não se interessam por qualidade” (p.18) – frase dita por Martin Goodman, fundador da Marvel. Tão cruel e áspera quanto qualquer outra verdade.

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2) Sobre Steve Ditko: “Devoto cada vez mais fervoroso das obras da romancista e filósofa Ayn Rand – cuja filosofia objetivista sublinhava o interesse pessoal, os direitos individuais e a lógica dura e fria – estava longe da imagem do empregado dócil (…)Ditko pegou o termo randiano saqueador [looter] e aplicou-o a um vilão; trouxe a ideia de que os homens ‘devem se relacionar pela troca de valor por valor’ e fez Peter Parker exibir ‘troca igualitária de valores’ de J. Johan Jameson”. (p.65-72) – uma frase a ser considerada pelos leitores que acham que quadrinhos são apenas uma diversão inocente, e que não há ideologia alguma por trás daquelas páginas.

Steve Ditko

Steve Ditko

3) “Dá para fazer negros comparem gibis sobre brancos, mas era difícil fazer brancos comprarem gibis nos quais o personagem principal era negro. E era ainda mais difícil fazer meninos comprarem gibis sobre mulheres” (p.142). Frase dita por Roy Thomas sobre os quadrinhos na década de 70, mas em muitos aspectos continua verdade até hoje.

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4) “É um ninho de cobras, a meu ver. Nada sobrevive num ninho de cobras. As cobras acabam se matando. Um dia eles vão acabar matando aquilo que foi a origem deles mesmos” (p.222). Frase de Jack Kirby sobre o mercado de quadrinhos. Aliás, o livro traz muitas informações sobre a briga entre ele e Stan Lee – e uma ótima fonte de informações para você decidir se Stan Lee foi o maior gênio ou o maior picareta dos quadrinhos.

Lee e Kirby - a única imagem que consta no livro

Lee e Kirby – a única imagem que consta no livro

5) “Em questão de meses, a Marvel anunciou que vários projetos ‘de luxo’, com papel especial e capa cartonada  estavam em desenvolvimento; eles se chamariam ‘graphic novels’” (p.231). As graphic novels foram o meio pelo qual tanto a Marvel e a DC conseguiram vender quadrinhos em livrarias para um público adulto.

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6) “A Mattel [fabricante de brinquedos] só queria da Marvel uma grande saga que seria lançada coincidentemente com a linha de brinquedos e que o gibi levasse o título Guerras Secretas, pois, de acordo com as pesquisas mercadológicas, as duas palavras [‘guerra’ e ‘secreta’] deixavam as crianças em polvorosa” (p.280). E foi assim que nasceu uma das mais lembradas sagas da Marvel.

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7) “Desde que o Homem-Aranha fique na pose certa, e eu consiga uma cena dele legal na splash page, indo na sua direção, não interessa o que tem atrás” (p.338). Frase dita por Todd McFarlane que resume bem a mediocridade dos quadrinhos mainstream dos anos 90.

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8) “Na indústria de quadrinhos do século XXI, quem se dava melhor era quem não tinha ilusão quanto à prioridade da viabilidade comercial em relação à expressão individual” (p.443).

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9) Sobre como leitores (e roteiristas) de quadrinhos entendem o que são quadrinhos de super-heróis “realistas”: “pessimista, violento e mais preocupado com repercussões do que com momentos de transcendência” (p.432).

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10) “A idade mediana do consumidor mensal de quadrinhos Marvel paira em torno dos trinta anos, de forma que a maioria dos leitores assistiu os ciclos narrativos repetirem-se diversas vezes. Os fãs reclamam das mortes, ressureições e sagas, mas em acessos coletivos de repetição compulsiva voltam afirmativamente com seus dólares” (p.451). Que, para fechar o ciclo, é apenas a mesma constatação de Goodman no início da Marvel Comics.

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Marvel Comics: a história secreta é um daqueles livros para se perder a inocência, quase como a primeira visita ao bordel. O que faz entrar é a curiosidade e a vontade de satisfação, mas pode ser caótico, iniciático e traumatizante. A leitura fica por sua própria conta e risco.

Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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15 respostas para Marvel Comics: a história secreta – 10 observações para perder a inocência sobre quadrinhos

  1. Parabéns pela resenha compacta, lúcida, inteligente e crítica sobre o livro Marvel Comics a História Secreta de Sean Howe. Gostei tanto de seu texto que coloquei o endereço do site no blog http://portaldogibinostalgia.blogspot.com.br/, que edito. Cordialmente,

  2. Olavo Lima disse:

    A marvel odeia Steve Ditko criador de doutor estranho,questão e alguns dizem que deu a ideia do conceito de peter parker,ele escrevia personagens bem distantes de sua moral,podia ser moralista como o questão ou totalmente psicodelico e liberal como o doutor estranho,fato é que a marvel colheu seus frutos sobre os cadaveres de muitos escritores e desenhistas como kirby só porque stan lee era parente do dono da editora ficou com todos os creditos

  3. Estou acabando de ler este livro, sou grande fã da Marvel e tem sido muito interessante ver esse lado empresa, da Marvel, os altos e baixos pelos quais passou…

    Ótima resenha.

  4. Nao vi nada de surpreendente no livro.
    Exemplo dizer que quadrinhos realistas sao violentos e mai preocupado com as repercussoes do que com momento de transcendencia chega a ser quase redundante de tao proximo da realidade.O ser humano nao transcende,apenas afunda na merda ate o inexoravel fim..

  5. Pingback: Melhores posts até agora – 2 anos de Quadrinheiros | Quadrinheiros

  6. James Fond disse:

    Adorei a resenha!O livro,pelo jeito, é polêmico e muito bom!Quanto a Stan Lee,podem falar o que quiserem dele,mas sem o seu empenho e direção,a Marvel não teria o sucesso que teve!Ler um livro como “Stan Lee-O reinventor dos Super-Heróis”de Roberto Guedes,ajuda na avaliação.

  7. Pingback: A História das Histórias em Quadrinhos: a Era de Prata | Quadrinheiros

  8. Pingback: Quadrinheiros Indicam Ep 4 – Marvel Comics: a História Secreta | Quadrinheiros

  9. hqbrum disse:

    Cada um é responsável pela sua vida…povo tem raiva do Stan pq outros não tiveram tanta atenção que ele. A vdd é que Stan se esforçou mais pro seu lugar ao sol. Ninguem ali tem direitos dos personagens criados. Stan foi a vida inteira Funcionário da Marvel. Aceitou um salario pra ser garoto propaganda, escrever soapbox pra cada edição, passou a vida inteira viajando de lugar em lugar dando palestras indo em convenções etc… A Marvel nunca teve um caso como Bob Kane / Bill Finger, sempre foram bem claros creditando os co-autores e o cara que chega com a ideia inicial/conceito merece mesmo mais credito que quem desenhou. Kirby e Ditko não continuarem vida toda como funcionarios da Marvel não torna Stan Lee picareta…

  10. GILSON MANOEL DE ARRUDA disse:

    para mim, tudo isso é normal. sabemos como pensa as empresas dos EUA. vivem de capital se não falem. por isso tanta ausência de valores.

  11. Pingback: Stan Lee sobre a politização dos super-heróis | Quadrinheiros

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