Uma reflexão a partir do mangá de Yoshiharu Tsuge.
O Homem Sem Talento é um mangá misterioso em que o tempo e a releitura só o ajudam a engrandecer. Situa-se em gênero de mangá conhecido como Watakushi, definido como “quadrinho do eu”, espécie de autoficção. Portanto, suas mensagens englobam uma série de conhecimentos empíricos do autor e filosofias pessoais e regionais que o ajudam a continuar sua vida.
A história foi lançada no Brasil em 2019 pela editora Veneta e a obra original foi entregue ao público japonês em 1985 pelo autor Yoshiharu Tsuge. Acompanhamos a história do protagonista Sukezo Sukegawa que abandonou a vida de mangaká e dedica-se a trabalhos que claramente serão falhos e o levarão à miséria iminente, como vender pedras e câmeras fotográficas recondicionadas.

O mangá é constantemente descrito como uma ode ao fracasso e uma das grandes questões é que quem sofre junto ao protagonista é sua esposa e filho pequeno que passam por muita dificuldade financeira.
Talvez a grande pergunta seja: Por que ele faz isso? Considerando que tem certo talento em desenhar mangás e poderia fazer isso para manter a renda da família. Essa é uma questão complexa, talvez o mais simples seja afirmar que ele não queria lidar com as pressões da indústria de quadrinhos japonesa, e assim não comprometer seu trabalho.
Falar sobre o “eu” do Tsuge nesta autoficção é mais complexo pela escassez de conteúdo relacionado ao autor e pelo distanciamento cultural entre autor e receptor desta obra. O Homem Sem Talento é um dos quadrinhos onde pude sentir um dos maiores distanciamentos culturais com um escritor e exigiu, além de releituras, muita conjectura a partir de pontos de vista pessoais em um quadrinho que se define como algo do eu, algo pessoal e de construção cultural tão fortes.

Portanto, acaba sendo injusto resumir questão tão complexa da vida e obra do autor ao aspecto da indústria de mangás japonesa. Essa não parece ser a única questão de Tsuge, o autor parece levantar a ideia de ter medo de alcançar esse inatingível ponto de sua vida que seria o estabelecimento de uma carreira e como isso implicaria em sua vontade de viver. Trabalhar com mangás (profissão que sua esposa diz ser a única em que ele é bom) implicaria em parar de tentar, implicaria no personagem parar de ser obrigado a levantar da cama todos os dias de manhã.
Essa questão foi retratada por diversos autores ao redor da literatura mundial, como Fernando Pessoa com o heterônimo Álvaro de Campos no poema Tabacaria:
“…
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.”
É possível interpretar este trecho de Tabacaria como essa dificuldade de nos levantar da cama todos os dias sem uma espécie de vontade, precisamos antes conquistar todo o mundo para então nos sugerir a vontade de continuar.
Na história Sukegawa “resolve” seu levantar da cama com a miséria material de sua família e a constante necessidade de trabalhar que o fracasso o leva a fazer.
Outra história que tratou desse tema foi Sandman que coloca Morpheus como alguém que depois de conquistar tudo que precisava, passa pela sensação de vazio já que não possui mais objetivos em sua vida.

É uma questão humana retratada de forma recorrente na literatura mundial, dentre outras obras poderíamos falar inclusive de Fausto de Goethe que abre o poema reclamando que já estudou todas as áreas do conhecimento de seu tempo e nada o preenche.
Porém é interessante ver outro autor que trabalha autoficção e argumenta de uma maneira muito semelhante a Tsuge. Kurt Vonnegut com seu Kilgore Trout, personagem que permeia vários livros do autor e serve como um alter ego do escritor dentro dos livros, o livro em questão é o Café da Manhã dos Campeões. Aqui Kilgore Trout foi convidado para um festival de artes para ser reconhecido por sua literatura (Trout é escritor, assim como Vonnegut) que durante toda a sua vida foi ignorada. Antes de decidir se irá ao festival ser reconhecido ou não, ele tem um diálogo com seu pássaro de estimação, Bill, que vive engaiolado.
“Então ele ficou pensando no que Bill talvez quisesse. Foi fácil de adivinhar.
— Bill, eu gosto muito de você, e eu sou tão importante nesse Universo que vou realizar seus três maiores desejos.
Ele abriu a porta da gaiola, uma coisa que Bill não seria capaz de fazer nem em mil anos.
Bill saiu voando até o peitoril de uma janela. E então encostou seu ombrinho no vidro. Havia apenas uma camada de vidro entre Bill e o grande mundo lá fora. Apesar de Trout trabalhar no ramo das janelas antitempestade, não tinha janelas desse tipo instaladas em sua residência.
— Seu segundo desejo está prestes a se realizar — disse Trout, fazendo, mais uma vez, algo que Bill jamais poderia.
Ele abriu a janela. Mas esse evento foi tão perturbador para o periquito que ele voou de volta até a sua gaiola e entrou.
Trout fechou a porta da gaiola e voltou a trancá-la.
— Esse foi o uso mais inteligente de três desejos que eu já vi — disse ele ao pássaro. — Você deu um jeito de ainda manter alguma coisa que valha a pena desejar, que é sair dessa gaiola.”
Sukegawa e Trout parecem sofrer do mesmo medo de não ter mais o que almejar e logo em seguida não serem mais capazes de levantar da cama pela manhã. Sukegawa foi pelo caminho da ode ao fracasso e Trout por talvez desistir de ir ao festival e se manter sempre anônimo com o desejo de ser reconhecido.
Talvez essa visão da questão pareça demasiado estranha sob o olhar do público latino americano que esteja sempre imerso em questões como a fome em seu país e países vizinhos, dores práticas, da carne, que são imediatamente associadas a uma maior importância por levar a morte pela falta de escolha. E esse é um dos fatores pelos quais talvez algumas nuances de O Homem sem Talento estejam praticamente restritas ao público que compartilha da mesma cultura de Tsuge, mas o interessante é perceber como essas ditas dores da alma são compartilhadas em todo o mundo e em vários momentos da história humana pela literatura e pelos quadrinhos. Essas dores sendo estranhas a nós, nos cabe lembrar do que disse Dostoievski: “O homem é um enigma, é preciso decifra-lo”.
O mangá ainda passa por uma série de outros pontos que valem uma parte dois. A leitura e releitura é recomendada pois os personagens, desenhos e as ideias aqui passam uma emoção peculiar sob o olhar de uma cultura bastante distante de nós brasileiros.
O Homem Sem Talento é de fato um “quadrinho do eu”, tanto da perspectiva da escrita quanto da leitura. Tsuge com seu Sukegawa faz uma ode ao fracasso na profissão e na arte, porém cria uma perspectiva de sobrevivência em meio a suas crises existenciais em um mundo que parece obriga-lo a ser e fazer algo pelo resto de sua vida sem novas glórias, alegrias ou sensações. Sukegawa não quer que sua vida seja uma morte de homem automática, mas uma continuidade de sensações em vontades de se levantar e ao menos estar no mundo.
LegalLL