20 obras da ficção: os cartógrafos do imaginário do século XX

Sabe aquela história que “a bebida é a porta de entrada para drogas mais pesadas”?

No caso de quadrinhos, as drogas pesadas são livros. E eles são formidáveis.

Sabe, em um ponto bem preciso no tempo, ali por volta da metade do século XIX, a leitura deixou de ser monopólio de gente bem-nascida. Se antes apenas uns poucos tinham acesso a grandes autores e obras, depois, aqueles tantos que nada tinham passaram a ser o público-alvo do que os autores tinham a dizer. O que se você pensar bem vai ver que é uma coisa muito boa.

O truque do sucesso é simples: o autor tem que trazer uma mensagem valiosa, profunda, de uma forma acessível. Bom, o princípio é simples, mas a tarefa não é fácil. Aí entra a importância das alegorias, das fantasias. Como ensinou o Aristóteles em Poética, são necessárias imitações (alegorias, exageros, encenações) para mostrar verdades. Quanto mais as fantasias e as verdades se avizinham, mais chances de o leitor reconhecer seus significados.

Hein??”

É. Ó.

Pense em termos de quadrinhos. Muitas vezes a realidade é transposta para as páginas. Não de forma explícita, direta, mas insinuada, imitada, exagerada. Por exemplo, um dos terrenos mais férteis para mostrar essa aproximação entre o que existe e o que poderia vir a ser é a tecnologia. Pense nos foguetes (que não existiam) e a “arma de raios” usada pelo Flash Gordon nos quadrinhos criados por Alex Raymond na década de 1930. Uma dessas armas é cópia descarada de uma metralhadora Browning M2 calibre .50:

 

Ou então, pense no jato dos X-Men, usado pela primeira vez na edição n. 20 de 1966, e que era uma variação do avião espião SR-71 Blackbird, cuja existência foi divulgada oficialmente em 1964 pelo presidente Lyndon Johnson.

Outras vezes, o sentido é inverso. Ou seja, quando a ficção é “transportada” para a realidade, o que pode provocar impactos revolucionários e aterradores. Por exemplo, hoje em dia ela ficou mal-falada, mas houve uma época em que “energia atômica” foi a meta de vida de todo sujeito que passava no vestibular de física. Grande parte é mérito dos trabalhos de Marie Curie e Ernest Rutherford nos primeiros anos do século XX.

As descobertas deles no campo da radioatividade inspiraram um jovem autor chamado Herbert George Wells, que por sua vez escreveu um pequeno livro chamado The World Set Free, de 1914. O conto era uma alegoria sobre a vontade da humanidade em domar as forças da natureza, como o poder de um sol, e na possibilidade de usar essas energias numa guerra.

Marcado pela história, o cientista húngaro Leo Szilard ficou impressionado com o cenário imaginado por H.G. Wells por anos. Em 1939, refugiado da Alemanha nazista nos Estados Unidos, Szilard, junto do amigo Albert Einstein, rascunhou a carta enviada ao presidente Franklin Rossevelt alertando sobre os potenciais riscos da energia nuclear.

Na carta os físicos recomendavam algumas providências a serem tomadas pelo governo americano, como indicações de localização de jazidas de urânio ou de como reunir uma equipe de especialistas em reações em cadeia. Foi essa carta que deu origem ao Projeto Manhattan, que levou à criação das duas primeiras bombas nucleares usadas contra o Japão em 1945.

Anos depois, em 1954, a ficção deu o tom da realidade mais uma vez quando a Marinha dos Estados Unidos lançou ao mar seu primeiro submarino movido a energia nuclear. Um dos engenhos mais avançados produzidos pelo país, o submarino foi batizado com um dos nomes mais célebres da ficção: Nautilus SSN 571, homônimo da embarcação comandada pelo Capitão Nemo, criações de Julio Verne na obra 20 Mil Léguas Submarinas, de 1870.

Quase sem nenhuma repercussão imediata, o primeiro episódio de Star Trek, “The Man Trap”, foi ao ar em 8 de setembro de 1966. Anos depois, após a série ter se tornado um ícone cultural dentro e fora dos Estados Unidos, a NASA apresentou o seu primeiríssimo ônibus espacial ao público em 1976 dando início a uma nova fase da exploração espacial. O nome da nave? Não podia ser outro: Enterprise.

Soterrada embaixo de tantos filmes, series e produtos ao longo de décadas, coisa que passa batido sob a marca que se tornou Star Trek, a origem da série é fincada num projeto político com endereço, CPF, RG, cartão de vacinação e telefone para contato. Um dos pilares da plataforma de John Kennedy, depois de anos comendo poeira atrás da União Soviética, a exploração espacial foi alçada à missão nacional no discurso célebre de 12 de setembro de 1962. Unindo passado, presente e futuro, JFK falou com todas as letras:

[…] William Bradford, discursando em 1630 na fundação da Colônia da Baía de Plymouth, disse que todas as empreitadas grandes e honoráveis são acompanhadas de enormes dificuldades, e ambas devem ser enfrentadas e superadas com equivalente destemor.

Se esta fração da história do nosso progresso nos ensina alguma coisa, é que o homem, em sua busca por conhecimento e progresso, está determinado e não pode ser contido. A exploração do espaço irá continuar, participemos dela ou não, e é uma das maiores façanhas de todos os tempos, e nenhuma nação que espere ser líder de outras nações pode ficar pra trás na corrida pelo espaço.

Aqueles que vieram antes de nós garantiram que este país navegasse nas primeiras ondas das revoluções industriais, as primeiras ondas da engenharia moderna, e a primeira onda da energia nuclear, e esta geração não irá se acomodar na contracorrente da era espacial que se inicia.

 

Nós temos intenção de ser parte dela – temos a intenção de liderá-la. Pois os olhares do mundo agora voltam-se para o espaço, para a lua e aos planetas além dela, e não aceitaremos a vê-los governados pela bandeira hostil da conquista, mas apenas pelo estandarte da liberdade e da paz. Não aceitaremos ver o espaço repleto de armas de destruição em massa, mas com instrumentos de conhecimento e compreensão.”

Note-se a versão original do primeiro parágrafo: “[…] all great and honorable actions are accompanied with great difficulties, and both must be enterprised and overcome with answerable courage.” A sorte é que JFK já tinha emprego. Senão Gene Rodenberry teria que pagar uma bolada para o roteirista da Casa Branca.

Na maioria das vezes, ideias, valores, princípios, receios, dúvidas, esperanças e sentimentos como os descritos acima são apresentados de forma diluída nos quadrinhos. São emoções engendradas no fim do século XIX e que se acentuaram ao longo do séc. XX ao sabor dos avanços da engenharia, da tensão das forças políticas e dos diferentes projetos que se gostariam que fosse o futuro.

Flash Gordon, Lanterna Verde, X-Men, e tantos outros quadrinhos das Eras de Ouro, Prata e de Bronze apresentaram esses elementos aos olhos de um grande público com a paleta dos maniqueísmos infantis, o que um leitor mais experiente sabe que é tratar apenas da ponta de um iceberg, a porta de entrada para um mundo muito maior, mais diversificado e, com frequência, mais assustador.

Histórias como Cavaleiro das Trevas e Watchmen, na Era de Ferro, pareciam responder com um pessimismo ensaísta as esperanças e desilusões do século XX – tônica, aliás, que elevou os quadrinhos ao status de fina arte sob o nome de “graphic novel” com sessão própria nas livrarias. Mas antes disso, aproximadamente entre as décadas de 1930 e 1970, aqueles dois pólos – a fé na técnica e a desilusão com o futuro – além de todos os matizes entre os dois, fervilharam em indagações, dúvidas e possibilidades nas obras de autores de estilos e temáticas variados.

Neste recorte temporal (anos 30 a 70 do séc. XX) se os quadrinhos eram a enseada dos territórios da ficção, a literatura era o verdadeiro alto-mar. Ali foram desbravados os territórios que até então tinham sido apenas pontualmente visitados. São obras que cartografaram os anseios e o imaginário profundo do século XX. São as obras que fixaram os marcos entre o que a realidade poderia ser e o que a fantasia poderia inspirar.

Para ficar apenas em poucos, são indicados aqui aqueles que podem ser os mais conhecidos, e, na sua própria forma, são os mais indispensáveis a qualquer um que sabe que existem perguntas a serem feitas, mas ainda não tem ideia por onde começar.

 

Admirável Mundo Novo

Aldous Huxley, 1932

Triplanetária

E.E. Doc Smith, 1934

Nas Montanhas da Loucura

H.P. Lovecraft, 1936

Os Filhos de Matusalém

Robert A. Heinlein, 1941

 

1984

George Orwell, 1949

Fahrenheit 451

Ray Bradbury, 1953

Eu, Robô

Isaac Asimov, 1950

Trilogia A Fundação

Isaac Asimov, 1951

Tropas Estelares

Robert A. Heinlein, 1959

Minority Report

Philip K. Dick, 1956

Duna

Frank Herbert, 1965

Andróides sonham com ovelhas elétricas?

Philip K. Dick, 1968

2001: Uma odisséia no espaço

Arthur C. Clarke, 1968

Matadouro Cinco

Kurt Vonnegut, 1969

O Homem do Castelo Alto

Philip K. Dick, 1962

Laranja Mecânica

Anthony Burgess, 1962

Planeta dos Macacos

Pierre Boulle, 1963

Encontro com Rama

Arthur C. Clarke, 1972

Ringworld

Larry Niven, 1970

Guia do Mochileiro das Galáxias

Douglas Adams, 1979

 

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
Esse post foi publicado em Velho Quadrinheiro e marcado , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Uma resposta para 20 obras da ficção: os cartógrafos do imaginário do século XX

Comente!