O universal termina onde começam a cultura e a língua. Esse é o conflito, motor da narrativa.
Sabe aquele truque de roteiro onde o antagonista do herói serve para ressaltar as qualidades nobres do personagem principal? O desprezo do vilão pela justiça, seu egoísmo e delírio de grandeza, crueldade e ódio, servem de contraponto para a ética do herói, para sua grandeza, seu altruísmo. Nas histórias que se ancoram nessa oposição, o mundo é simples, existe o lado do Bem e o lado do Mal. Mas a realidade é bem mais do que isso.
Quando o roteirista inverte a fórmula e faz o herói sair de sua posição idealizada, tipo quando o Superman mata o presidente Lex Luthor, os personagens se aproximam mais de nós, leitores. Não são mais personificações fixas de um mundo utópico. São suscetíveis a pressões, conflitos internos, e suas certezas são contraditórias assim como as nossas. Mas este ainda é um cenário maniqueísta onde o Mal às vezes corrompe o Bem, mas os dois existem em espectros opostos.
Outra possibilidade de roteiro é a aproximação. Um exemplo disso é o monólogo de Shylock, o vilão da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare. O personagem é cruel, vingativo, mesquinho e covarde, mas o autor consegue extrair o que nele há de mais universal e humano, e nós nos identificamos quando ele diz:
“Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.” – Shylock, in O Mercador de Veneza, ato III, cena I
Mais uma vez um roteirista pode inverter isso. As mesmas palavras são colocadas na boca do protagonista (herói da narrativa) vivido por Lazaro Ramos no filme Ó Paí, Ó. Notem que essa comparação proposta pelo vilão de uma narrativa e pelo herói de outra os aproximam de nós muito mais intensamente do que o maniqueísmo tradicional das histórias de super heróis.
É possível contar histórias por aproximação ou por oposição porque os dois movimentos são parte da forma pela qual nós humanos percebemos o mundo. Nós classificamos semelhanças e diferenças enquanto interagimos e navegamos pela vida, escolhendo cooperar ou competir, atacar ou defender, mas essas classificações e escolhas são parte do nosso mundo interno. Podemos escolher viver uma utopia de valores fixos que nos digam sem sombra de dúvida quem são os bons e quem são os maus, ou podemos escolher identificar no outro aquilo que nos aproxima. Só que nenhuma dessas posturas internas é o cenário onde nossas interações vão acontecer. O mundo no qual os personagens (ou nós) transitam é um palco, e é aí que entra a tão celebrada e polêmica diversidade nos quadrinhos.
Miss Marvel é um dos exemplos bem sucedidos desse tipo de iniciativa das grandes editoras. É uma narrativa simples, que bebe na fonte de outros sucessos absolutos como o Homem-Aranha de Stan Lee e Steve Ditko nos anos de 1960, mas que navega por um cenário bem mais complexo e diverso. Os poderes da adolescente Kamala Khan aparecem depois dela ser exposta às névoas terrígenas dos Inumanos, e então ela passa a fazer as vezes de amiga da vizinhança, protegendo seu bairro de ameaças cada vez mais bizarras. Essa é a parte da oposição. Ela tem inimigos, mentores, comete erros por excesso de confiança, quase desiste por causa das consequências negativas de seus erros, recupera a autoconfiança, volta para a luta, ou seja, a clássica jornada do herói.
Mas sua origem paquistanesa, sua religião e seu gênero acrescentam camadas à narrativa. Bruno, seu melhor amigo, que serve como uma espécie de ajudante da heroína, em uma conversa com o irmão mais velho de Kamala, protagoniza uma cena de aproximação:
Bruno, que sabe sobre os poderes de Kamala, que protege sua identidade e a salva algumas vezes, vive um amor platônico por ela. Na cena fica claro que a história da família dele é muito semelhante à da família dela, e apesar disso, aquilo que é universal (o amor) encontra uma enorme barreira diante das diferenças de cultura, língua e religião (particular) e volta a ser universal novamente. Isso faz com que a história de amor desses dois personagens torne-se universal (o amor proibido), e por isso causa uma maior identificação do público.
E o que se não a arte pode fazer a síntese entre o particular e o universal?
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