O criador da personagem responde.
A primeira aparição de Carol Danvers foi em Marvel Super-Heroes #13 (1967) como coadjuvante em uma história do Capitão Marvel escrita por Roy Thomas e desenhada por Gene Colan. Foi um longo caminho (que você pode conhecer aqui) até a personagem tornar-se a super-heroína Ms. Marvel com roteiro de Gerry Conway (com o reforço de Chris Claremont já na terceira edição, assumindo o título a partir da quarta) e desenhos de John Buscema (que abandonaria o título na terceira edição para se dedicar a Conan) em Ms. Marvel #1 (1977). Carla Conway, roteirista e então esposa de Gerry, também é creditada no roteiro da primeira edição contribuindo com “mais do que uma pequena ajuda e incentivo”.
Mas antes do texto um pouco de contexto.
Na Era de Bronze (1970-1985) as transformações e lutas de minorias nos Estados Unidos e problemas sociais seriam levados aos quadrinhos de super-heróis, dando um novo fôlego ao gênero. É nesse período que na Marvel surgem Luke Cage (1972) e Hector Ayala, o Tigre Branco, de ascendência hispânica (1975). O Pantera Negra ganhará um título solo (1973, apesar do personagem ser de 1966).
O próprio codinome da super-heroína já remete à luta pela liberação das mulheres nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70, como você verá a seguir. Também é importante lembrar que na edição #1 Carol Danvers é editora da revista Woman, um tributo e referência à Gloria Steinem e à revisa Ms.
Resumindo de forma explícita: a Ms. Marvel foi uma personagem fortemente inspirada no movimento feminista desde seu início, em sintonia com o zeitgeist da Era de Bronze.
Recentemente o próprio Conway disse:
“O que é tão frustrante para os criadores hoje sobre coisas como o absurdo do ComicsGate e a misoginia é que no passado quando os quadrinhos eram uma indústria do tipo clube de garotos, qualquer tentativa de criar personagens femininas não havia qualquer resistência. Ao contrário, isso era até bem-vindo, isso era percebido como uma divertida adição à mitologia. As pessoas adoravam personagens como Fênix e Tempestade e Ms. Marvel tornou-se bem popular. Não havia uma atitude do tipo nós-contra-eles. Ao menos, eu não notava isso, e para mim é isso que é tão idiota sobre a atual, e vou citar, “controvérsia”. Não deveria nem haver controvérsia! No passado nós estávamos rompendo patamares com esse tipo de coisas, por mais desajeitado que fosse, e ninguém se opunha”.
A declaração dá pistas para entender o que está acontecendo agora. A Marvel nunca teve problemas com diversidade, porém, como Conway ressalta, era uma indústria de garotos, um Clube do Bolinha. Agora, no século 21, isso não é mais verdade. O público consumidor mudou, está mais diverso, e não bastam mais histórias com mulheres, mas para mulheres, por mulheres.
Por isso em suas reformulações recentes a Ms. Marvel, agora Kamala Khan, foi escrita por G. Willow Wilson, e o arco Mais Alto, Mais Longe, Mais Rápido e Mais (umas das inspirações para o filme) da Capitã Marvel foi escrito por Kelly Sue Deconnick.
Por que não havia oposição na época, segundo Conway, e há hoje? Arrisco a dizer que o pessoal que encara os quadrinhos como um Clube do Bolinha até aceita diversidade nos quadrinhos (afinal, a Tropa Alfa, do genial John Byrne foi de fato um sucesso, não é mesmo?), mas não aceita que existam quadrinhos feito por e para um outro público que não ele mesmo.
Mas voltemos ao texto de 1977, agora devidamente embasados.
É interessante que Conway tenha sentido a necessidade de justificar o motivo de estar escrevendo o título. Ele tem alguns bons argumentos para isso, outros nem tanto. Caberá a você julgar. Mas é importante lembrar que foram iniciativas como as da Marvel e de Gerry e Carla Conway com a Ms. Marvel que abriram caminho para que hoje possam existir não apenas quadrinhos de super-heróis com mulheres, mas também por mulheres e para mulheres.
Ms. Prints [1]
Texto: Gerry Conway
Tradução: Nerdbully
Revisão: Velho Quadrinheiro
Cena um, take dezessete.
Durante a última hora, eu tento começar essa carta para a primeira edição de MS. MARVEL sem chegar a lugar algum. Existem tantas coisas que eu quero dizer, eu mal consigo me conter para dizer. Se você puder me aguentar, eu tentarei fazer isso o mais rápido e da maneira mais indolor possível.
Primeiro de tudo, há uma Ms. Marvel.
Ela não é a sua super-heroína padrão (esperamos). Além disso, nesse momento, ela nem sequer sabe a sua própria identidade secreta. Ah, sim, ela tem poderes e habilidades muito além daquelas das mulheres mortais: mas sua fraqueza (se isso é uma fraqueza; eu não tenho certeza se é) é quase tão grande quando sua super-força ou sétimo sentido ou o poder de voo. Ela não sabe quem ela é.
Agora, se você pensar sobre isso por um momento, você poderá notar um paralelo entre a busca dela por uma identidade e a busca da mulher moderna por uma tomada de consciência, pela própria liberação, por identidade. Em certo sentido isso é intencional. Ms. Marvel, pelo seu nome senão por todo o resto, é influenciada, em grande medida, pelo movimento pela liberação das mulheres. Ela não é a Garota Marvel, ela é uma Mulher. Não uma Senhora ou uma Senhorita – mas uma Ms. Sua própria pessoa. Ela mesma[2].
Mas ela não sabe quem ela é…
Naturalmente, quando chegar o momento, ela aprenderá sobre sua verdadeira identidade (em duas edições, para ser exato, se você se importa com estatísticas), mas essa busca por si irá continuar enquanto a personagem existir. Ms. Marvel é muitas coisas, mas sobretudo ela é uma personalidade em desenvolvimento, constantemente alcançando uma melhor compreensão de si mesma como ser humano.
Mas por que o nome Ms. Marvel?
Eu acredito que foi Roy Thomas que sugeriu o nome quando Stan Lee sugeriu o quadrinho. Mas isso foi antes da minha chegada à Marvel, então eu não tenho certeza. Outros escritores estavam escalados para o quadrinho, mas fatalmente o trabalho chegou até mim e desde então eu tenho desenvolvido minhas próprias ideias, influenciado por tudo que veio antes.
Ms. Marvel. Duas coisas sobre o nome são importantes – o Ms. e o Marvel. Nós temos um personagem chamado Capitão Marvel, e uma vez que eu sou um fã da continuidade, eu decidi que um Marvel tinha que estar ligado ao outro; e quando eu apareci com esse brilhante pensamento, eu lembrei de uma personagem das primeiras edições do quadrinho do CAPITÃO MARVEL – uma agente de segurança em Cape Kennedy chamada Carol Danvers. Qualquer mulher que pode ser uma chefe de segurança da NASA naqueles dias pré-liberação tinha que ser uma mulher, uma mulher que chamaria a si mesma de Ms. Uma vez que Ms. Danvers saiu de vista há algum tempo, me ocorreu que ela poderia ter passado por mudanças suficientes para a) trazê-la para Nova York e estar em contato com outros membros do nosso elenco de apoio (Jonah Jameson, Mary Jane Watson, Peter Parker, et. al.) e b) transformá-la em uma super-heroína de primeira classe.
O resto, como eles dizem, foi simples.
Mas não tão simples…
Como qualquer um que tem vivido a última década ou os últimos anos, estou consciente das tremendas mudanças ocorrendo na sociedade; e como qualquer um que tem vivido essas mudanças, eu mudei a mim mesmo. Apenas uma pessoa estúpida poderia se chamar de um ‘homem chauvinista reformado’ e esperar ser levado à sério; esse não é o tipo de julgamento que um homem pode fazer sobre si pela falta de perspectiva. Ainda assim, se não totalmente liberado, eu sei o bastante para estar consciente de que o problema existe, e para entender que todos nós estamos suscetíveis ao chauvinismo às vezes. Portanto, ao abordar a personagem Ms. Marvel, eu tentei me colocar no seu ponto de vista e porque eu sou um escritor (e porque colocar-se no lugar de um personagem é o ofício do escritor), eu acredito que consegui. Como eu disse, não é tão simples…
O que traz uma outra questão um tanto espinhosa. Por que um homem está escrevendo um quadrinho sobre uma mulher? Por que uma mulher não criou a Ms. Marvel?
E, para essa questão, não existem respostas simples…
Para começar, por qualquer motivo que seja (certo ou errado) no momento não há nenhuma mulher escritora suficientemente treinada e qualificada trabalhando em quadrinhos de super-heróis. (Dizendo isso eu sei que eu desprezei meia dúzia de mulheres talentosas; mas eu mantenho o queeu disse – não há mulheres treinadas nos quadrinhos de super-heróis)[3]. Deveria haver, não estou negando isso, mas não há. Essa é a primeira razão.
A razão dois é mais pessoal. Um homem está escrevendo esse quadrinho porque um homem quer escrever esse quadrinho: eu. É um desafio. Eu quero fazer isso. Mais ainda, eu não preciso fazer isso pessoalmente.
Razão três – por que não um homem? Se o movimento por liberação das mulheres significa algo, é a batalha por igualdade entre os sexos. E meu argumento é que um homem, propriamente motivado e consciente das dificuldades, pode escrever uma personagem mulher tão bem quanto uma mulher. Havia uma crença de que mulheres não poderiam escrever histórias de aventuras para homens convincentes, mas em muitos campos isso se provou uma inverdade. Eu sustento que o contrário também é igualmente inverdadeiro – que homens não podem escrever mulheres convincentemente. Que homens não tenham escrito mulheres convincentes no passado não significa que não pode ser feito; significa simplesmente que aqueles homens – como indivíduos – não puderam. Se eu consigo ou não é algo que você terá que decidir; mas, em sentido abstrato, por que não?
Bem, no começo dessa página eu disse que estava tentando há cerca de uma hora escrever o que eu escrevi e ao menos está feito. Perdoe a falta de organização e coesão e a incoerência parcial, se puder. Já passaram das 3 da manhã e minha pobre mente já se foi. Essa foi uma das introduções mais difíceis que eu já fiz, mas está completa e eu vou deixa-la escrita assim.
No mínimo vou deixar você com um pedaço da mente que está se deteriorando pela pressão e falta de sono.
Na melhor das hipóteses eu posso ter dado uma pista ou outra para refletir sobre a mulher guerreira que nós orgulhosamente chamamos… Ms. Marvel.
[1] Trocadilho intraduzível com o termo Ms. (ver nota 2), a palavra misprint (impresso de maneira errada) e o título do quadrinho, Ms. Marvel. Ms. Prints será uma seção recorrente na revista com textos dos criadores sobre a personagem, o processo criativo, cartas dos leitores etc.
[2] Os termos Miss ou Mrs. definem uma mulher pelo seu estado civil. A mulher ou é uma Senhorita (Miss, solteira) ou Senhora (Mrs., casada). O termo Ms. tenta escapar disso, usado muito pelo movimento pela liberação das mulheres nos anos 60-70 nos Estados Unidos. Veja mais informações aqui.
[3] Ainda que Conway refira-se exclusivamente a mulheres escritoras de quadrinhos, lembramos que Marie Severin trabalhava na Marvel na época e foi cocriadora da Mulher-Aranha, personagem que também debuta em 1977, já sendo uma desenhista premiada. Ela assina as cores da primeira edição de Ms. Marvel.