A Mulher-Gato e o direito de ser esquecido

Selina Kyle estava anos à frente de seu tempo.

Lembrando: em 2005, se iniciava a trilogia de Christopher e Jonathan Nolan protagonizada por Christian Bale em Batman Begins. Ensinava o filme, canalizando o trauma da infância, Batman aprendeu a usar o medo para conter o crime em Gotham City.

Em 2008 veio o capítulo mais intenso da série, Batman: O Cavaleiro das Trevas. O “ensaio” em forma de filme revelou o âmago do antagonismo do herói e o Coringa (que possuiu o corpo do ator Heath Ledger – única explicação possível para interpretação tão sublime). Na essência, eles são agentes de duas forças opostas, Ordem e Caos.

No terceiro capítulo, Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), com uma lacuna irreparável deixada pela morte de Ledger, os irmãos Nolan fizeram o melhor possível: esmagaram Batman sob três pesos-pesados: Bane, Talia Al-Gul e a Mulher-Gato. Num roteiro emaranhado e, convenhamos, pouco criativo, as motivações de cada um se revelaram mais pessoais do que ideológicas. No caso de Bane e Talia, muito se deve à morte de Ra’s Al Gul, vivido por Liam Nesson em Batman Begins. Já para a Mulher-Gato, a raison d’être é o desejo de ser esquecida. E isso é mais instigante que a mera vingança, o objeto de reflexão mais precioso do filme.

Como logo detectou o cavaleiro das trevas, Selina Kyle podia ser uma ladra incomparável, digna da mais alta reputação no submundo do crime a ponto de ser contratada pelos mais perigosos vilões. O sucesso dela na “carreira” era garantido. Mas ela tinha como único objetivo reunir recursos suficientes para apagar os registros da sua existência criminosa. Buscava uma “cura” tecnológica milagrosa, recurso que destruiria toda informação sobre a trajetória em qualquer banco de dados. Deixar os rastros da juventude para traz, para ela, é a medida necessária para um “clean slate”, uma estaca zero para uma nova vida.

O direito de ser esquecido, parte de uma discussão mais ampla e atual, indo além de um capricho individual, tem o potencial de ser um novo direito humano universal e de séria repercussão na vida de cada um. Parece exagero? Vamos pensar.

Diz um trecho da Declaração de Qingdao (2015) em seu artigo 5º:

A Tecnologia oferece oportunidades sem precedentes para reduzir duradouras diferenças de aprendizagem. A aplicação de tecnologias de comunicação e informação (TIC) é essencial se iremos alcançar nosso compromisso na Declaração de Incheon para não-discriminação na educação, equidade de gênero e empoderamento feminino para desenvolvimento sustentável. Nós nos comprometemos a garantir que todas as meninas e meninos tenham acesso a dispositivos digitais e um ambiente de aprendizagem relevante e responsivo até 2030, independente das deficiências, status social ou econômico, ou localização geográfica.  […] 

Antes de perguntar quem é esse tal de Qingdao, saiba que é uma cidade na República Popular da China, que sediou a Conferência Internacional sobre TIC e Educação pós-2015 da UNESCO, do qual o Brasil é signatário.

Queiram ou não, os entes jurídicos nacionais e internacionais irão se defrontar com a realidade de uma geração crescente de pessoas que, agora na infância, estarão conectadas de uma forma mais transversal e ininterrupta com as diversas formas de interação e comunicação online. E a educação é apenas um aspecto parcial dessas interações.

Saindo da premissa que boa parte das nossas interações por meios digitais não é dedicada a esforços profissionais nem educacionais (seja sincero, qual é o aplicativo que você mais usa no seu celular?), é razoável imaginar que deixamos um rastro de bobagens mal-pensadas, ofensas involuntárias, insinuações sem endereço, imagens com significados irrefletidos e todo tipo de informações passíveis de crítica, que não correspondem mais a opiniões atuais ou que simplesmente não repetiríamos.

Cada uma delas, indexadas e realocadas em outro contexto e tempo têm o potencial de trazer prejuízos severos no bem-estar pessoal e profissional de qualquer pessoa. James Gunn e Carolina Dieckman que o digam.

Por outro lado, a crítica que se poderia fazer (e se faz, pelo que descubro nesse assunto novo pra mim), é que o direito ao esquecimento pode acentuar uma mentalidade de “pós-história” ou de “a-história”. Ou seja, legitimar o direito de esquecimento abre espaço para um constante revisionismo de ações e fatos. Tornaria os indivíduos “inimputáveis” por decisões tomadas no passado, este cada vez mais “apagado” por uma opção do autor, agora apoiado pelo tempo e vivência para reconhecer seus erros. Os significados dos prós e contras irradiam para muitas esferas, da Filosofia, Ética, História, Direito, Psicologia entre tantos. É espaço de uma reflexão ampla e que não ouso avançar muito.

Já na tenda quadrinheira, resta lembrar das lições de Peter Gay e Sigmund Kracauer, estudiosos da Cultura de Weimar, da estética expressionista e do cinema alemão na década de 1920 e 1930. Em filmes como O Gabinete do Dr. Caligari (1920) e Metropolis (1927) eles reconheciam marcadores de um “abalo social”, como se o cinema fosse um sismógrafo delineando o surgimento do nazismo.

Por exemplo, no filme O Gabinete do Dr Caligari, o jovem sonâmbulo Cesare era usado como instrumento de assassinatos pelo maligno Dr. Caligari. Num primeiro momento, os atos do vilão são expostos por Francis, o jovem amante de Jane, quase assassinada por Cesare. Mas no desenrolar da trama é revelado que o Dr. Caligari, na verdade é um bondoso médico que busca curar Francis, interno de um hospício, acometido de graves fantasias mentais e que projetou no médico o papel de vilão.

Conforme indicam Peter Gay e Kracauer, Robert Wiene, o diretor do filme, “emoldurou” o roteiro original dos jovens Carl Mayer e Hans Janowitz, autores com posturas anti-conservadoras (“de esquerda”), em uma mensagem pró-reformadora, patriarcal e tradicionalista. Para Peter Gay e Sigmund Kracauer, esta decisão de adulterar o filme era o indicador de uma sociedade que ansiava pela restauração de suas raízes autoritárias.  De uma mensagem crítica, o filme se tornou um “elogio” da tradição e das velhas instituições, que cooptaram as gerações mais jovens a cumprir seus desejos repletos de resignação e revanchismo.

E a Mulher-Gato em O Cavaleiro das Trevas Ressurge?

Ao se recuperar do ataque brutal de Bane, Bruce Wayne oferece a Selina Kyle o que ela queria, o pendrive com o programa apagador de passado, em troca de ajuda para encontrar Lucius Fox e salvar Gotham. Ao final, após vencer os vilões, é mostrado que o próprio Batman juntou-se a Selina Kyle numa vida nova, sugerindo que ele também usou o recurso pra “sumir” do mapa.

Assim como De Caligari a Hitler, estaria O Cavaleiro das Trevas Ressurge sinalizando algum desastre no futuro? Assim como para muitos alemães que iam ao cinema em 1930, é difícil antecipar. Mas uma coisa é certa: o direito de ser esquecido certamente será lembrado por cada um que se arrependeu de algo que deixou registrado online.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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