Como os quadrinhos foram possíveis? Mais especificamente falando os quadrinhos de super-heróis.
Tal como Jon Snow, as histórias em quadrinhos com heróis – super-heróis – são uma coisa que não deveriam ter nascido. Do ponto de vista textual eles habitam, ao menos, duas dimensões contraditórias: o mito e o folhetim.
Mas, apesar de bastardo, não quer dizer que não seja possível explicar. Se você for atento, se você der uma chance, há uma genealogia morfológica. Ou uma morfologia genealógica. Um mapeamento filológico. Uma investida semiótica. Um eixo interpretativo. Uma coluna de explicação. Uma perspectiva de significado. Uma base cognitiva. Enfim, uma forma de entender a birosca toda. Tenho dois eixos para essa possível explicação: o folhetim e o mito.
O folhetim
Umberto Eco ensinou: o “super-homem de massas” nasceu na literatura de folhetim (feuilleton) na década de 40 do século XIX. Antes de Dumas, Balzac, Flaubert e Hugo, a obra que moldou o gênero foi “Os Mistérios de Paris”, de Eugène Sue. Publicados no Journal de Debats, a história narrava a trajetória de Rodolphe de Gerolstein, brioso dono de terras, protetor dos pobres, eterno apaixonado por uma amante falecida, pai de uma filha perdida e dotado de indomável senso de justiça, o que o colocava para além da lei.
“[Dê-se] uma realidade quotidiana existente e todavia insuficientemente considerada, na qual descobrir elementos de tensão não-resolvida (Paris e suas misérias); dê-se um elemento resolutor, em contraste com essa realidade básica, que apresente uma solução imediata e consolatória das contradições iniciais. Se a realidade básica for efetiva, e não existirem nela as condições para a resolução dos contrastes, o elemento resolutor deverá ser fantástico. […] Esse elemento será Rodolphe de Gerolstein.” P. 62
Esse conto, separado em 90 capítulos, exigia que detalhes da trama, do cenário (a Paris pré-Hausmann), características e atos dos personagens fossem relembrados, reiterados de forma a manter a lealdade do público. Diz Eco, “[…] O enredo deverá portanto distribuir vastas faixas de redundância, isto é, deter-se longamente sobre o inesperado de modo a torná-lo familiar.”
Como nunca tinha ocorrido antes, a opinião – e o desejo – do público tornaram-se fatores determinantes para a criação da história. Note-se: as primeiras décadas do século XIX foram as que marcaram o surgimento das “sociedades industriais” e junto uma maçaroca demográfica sem instrução, banho ou opções de lazer (exceto morrer de tétano ou tomar chá, sei lá).
Ora, mais sucesso, mais dinheiro no bolso do jornal, mais pressão sobre o escritor. “[…] A necessidade psicológica, sentida pelo leitor, da dialética tensão-desfecho, é tal que no pior dos folhetins, acaba produzindo falsas tensões e falsos desfechos.” Pp. 65-66
Ali estava o coração do folhetim oitocentista: o falso desfecho, a distribuição em capítulos: o episódio. O episódio, tanto quanto a narrativa em si, passa a ser a característica e recurso principal desse tipo inovador de história. Mal sabia Sue, essa “mínima” alteração foi o gatilho para uma revolução na ficção fantástica. O sucesso do folhetim influenciou (ou deu origem?) às “penny dreadfuls” inglesas, que levaram às “dime novels” americanas. Além, é claro, das novelas brasileiras.
Mas, importante reconhecer, a narrativa episódica, ou seja, uma mesma história narrada em partes menores, não foi o único componente narrativo que deu origem aos heróis de quadrinhos, esses, lááá na década de 1930. Fator mais conhecido, aparentemente na moda, aqui mesmo já abordado dezenas de vezes, a característica mais básica dos quadrinhos mainstream é o caráter mítico do herói. E isso é um problema.
O mito
Veja bem, o herói é um personagem arquetípico, integrante de um repertório imaginário coletivo, simbólico, mítico, originário de uma narrativa linear clássica. Como definido por Aristóteles, a narrativa poética clássica (seja a comédia, a tragédia ou a epopeia) segue um percurso padronizado: início, tensão, clímax, desenlace e catarse. É uma história finita, com começo, meio e fim, este último normalmente marcado com a morte ou exílio do herói. Mesmo que o herói, um Aquiles, Hércules ou o rei Arthur, passe por episódios distintos, você sabe qual será o desfecho das aventuras deles. Eles pertencem a uma história fechada.
Explica Eco em Apocalípticos e Integrados:
“A personagem mitológica da estória em quadrinhos encontra-se, pois, nesta singular situação: ela tem que ser um arquétipo, a soma de determinadas aspirações coletivas, e, portanto, deve, necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemática que a torne facilmente reconhecível (e é o que acontece com a figura do Superman); mas, como é comerciada no âmbito de uma produção ‘romanesca’ para um público que consome ‘romances’, deve submeter-se àquele desenvolvimento característico, como vimos, da personagem do romance.” p.251
Superman, Capitão América, Batman, Homem de Ferro, Mulher-Maravilha, Homem-Aranha, Lanterna Verde, já está mais do que claro e divulgado, não vão ter menos histórias do que existem leitores (e espectadores) para consumi-las pelas próximas décadas.
Uma obviedade? Talvez. Mas enquanto vimos que Eugène Sue esticou a narrativa por vários capítulos alterando a forma de narrar histórias para sempre, nós estamos testemunhando o passo seguinte: a narração contínua das aventuras dos mesmos personagens não mais em arcos fechados, mas em histórias repletas de referências internas que se entrelaçam por décadas.
Como forma de amortecer a densidade dessas referências e conciliar os gostos de gerações de leitores, a DC passou por várias Crises (Nas Infinitas Terras, de Identidade, Infinita) e o recente reboot que deu origem aos Novos 52. Já a Marvel, numa espécie de evolução da DC, teve apenas que se valer de algumas sagas, menos importantes como recurso paliativo e mais livres como projetos editoriais criativos. Seja como for, ambas continuam essencialmente narrando a mesma história. Um folhetim mitológico.
É de se especular: que tipo de sociedade demanda a presença de heróis míticos que nunca chegam ao fim de sua história?
Adoro quadrinhos, tenho o sonho de produzir ao menos um quadrinho meu. Muito boa a postagem, adorei !
Só não esquece de lembrar dos camaradas aqui quando for ryca e famosa! XD
Dois comentários a partir das duas temáticas abordadas: sobre o folhetim, é possível perceber que roteiristas, desenhistas e equipe editorial conseguiram “contornar” o sequenciamento de episódios definindo os arcos narrativos, isto é, esta história prossegue até certo ponto, apresentando (ou reiniciando uma história sem se ater aos ditames passados) uma trama dividida em capítulos com começo, meio e fim, ainda que sobre algo que pode dar continuidade ou permanecer como um ponto a ser explorado futuramente. Este método permite a troca sazonal da equipe editorial ao mesmo tempo que solidifica/complica a trama cronológica de um personagem. E este é o problema um.
Em relação ao mito, já ouvi – e, possivelmente foi citado en passant por aqui em algum texto – que os super-heróis serão daqui a alguns séculos o que os mitos de diversas culturas são para nós hoje: uma fonte de histórias que servem como hermenêutica para diversos propósitos semiológicos ou não, atingem diversos públicos e despertam diversas interpretações que caminham entre o amor e o ódio. Super-heróis são os mitos modernos ou pegam emprestados deles certas características que os fazem predominar até os dias atuais, sobrevivendo ao choque de gerações através de reboots, retcons, revisões, readaptações e socos na realidade (ok, melhor esquecer este!)? Eis o problema dois.
Chamo de problemas, porque não há uma fórmula que consiga resolver anos de cronologia sem descaracterizar o personagem eventualmente ou colocar um ponto final em sua história – e, mesmo que ocorra, seja por fatalidade ou outro motivo apresentado no decorrer das histórias, a solução é passageira, já que a barreira entre vida e morte nas HQs é tão tênue quanto trespassar uma fronteira de países vizinhos. No fim, ainda acompanho estas “benditas” HQs, mais pelo que a história representa, pelo que traz além da eterna batalha bem x mal, pelo fator divertimento/ponderação sobre o que a história cobre e o contexto em que foi produzida, além de diversos outros motivos.
André,
faltou enfatizar no post, quadrinhos, por todas essas características, são uma singularidade narratológica no percurso da humanidade. Mais uma vez, eles são um folhetim (ou seja, episódico) e mitológico (linear e “fechado”). Um verdadeiro paradoxo.
Como você mesmo apontou, há problemas intrínsecos que são resolvidos pela renovação das equipes editoriais ou por meio de reboots e socos na realidade. Ao ver os quadrinhos como “mero” entretenimento há uma tendência geral em desqualificar a linguagem e vê-la como um gênero menor na arte. Discordamos. Quadrinhos são uma verdadeira jóia preciosa dos nossos tempos. Única.
A opinião da casa é de que, talvez tragicamente, mais do que a História (ou seja, a narrativa das ideias e ações dos homens no tempo e espaço) as narrativas ficcionais que foram criadas nessa contemporaneidade, o início do século XIX até hoje, serão mais lembradas nas mentes das gerações que virão depois que todos nós já estivermos mortos.
Talvez tanto quanto sabemos com muito mais precisão quem são os heróis da Guerra de Tróia do que os modos de vida, tamanho da população e tipos de produção agrícola das populações da Trácia na Antiguidade.
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