Ex Libris: a importância do editor nos quadrinhos

Do Aristóteles ao Sidekick, não existe autoria.  Existe, sim, editoria.

Ora, como assim?

Assim que se você conhece, ouviu, leu, gostou ou citou pra rechear sua nota de rodapé, enfeitar sua página de Facebook ou porque acrescentou mesmo algo na sua vida, nenhuma ideia passou livre de uma tesoura de editoração.

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“Finally, some reckoning”

Pesadelo solitário de todo autor, não existe originalidade absoluta. Toda obra que é publicada vem editada. Isso vale até mesmo para aquilo que é “underground” (que não existe) ou aquele autor que você acha GE-NI-AL, mas que, em diferentes circunstâncias, seria o andarilho que habita a esquina da sua casa junto com um cachorro vira-lata e esteve sóbrio três anos atrás.

"Remember, remember, 5th of november... I had some nice whisky"

“Remember, remember, 5th of November… hic…
I had some nice whisky… “

Já falamos isso por aqui. Todo trabalho intelectual, cultural, livro, música, filme, e particularmente os quadrinhos, é resultado de um esforço coletivo, pouco importa a culpa ou mérito que se atribua ao nome que vem estampado na capa.

Se existe editora, existe interesse financeiro. Se existe gênero, existem referências que orientam. Se existe sucesso, existe público. Cabe ao autor descobrir cada um ou ser descoberto. Mas a concepção de “paternidade” (ou “maternidade”) de alguma obra é relativamente recente, de meados do século XIX. Foi quando o autor passou a submeter o rumo dos enredos diretamente ao gosto deste público mediado pelos editores.

“Hã?? Como assim? Mas e a Guerra de Tróia, o Aquiles, Ulisses e tals? Aquele cara lá, o Homero, pouta autor! Tá cheio de autor antes disso!”

"E um filme moderadamente legalzinho"

“Saiu até um filme moderadamente legalzinho”

Veja bem, assumir que Homero bolou toda a Ilíada é tão plausível quanto pensar que o George Lucas é a mente genial por trás do Império Contra-Ataca. A presença de um editor, ou uma equipe editorial que filtra, processa, direciona e rotula a obra original de um autor é indispensável para que ela se torne realidade.

Do contrário, o Batman, que é assim:

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 Poderia ter sido assim:

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(Aliás comentamos isso na palestra Quadrinheiros Explicam – Batman: o herói de mil faces. Você pode ver as fotos aqui. Gostou? Vamos dar um curso em janeiro no mesmo estilo, dê uma olhada na barra lateral do blog à sua direita)

Nos quadrinhos existem editores lendários como Julius Schwartz, Jim Shooter e Karen Berger, que descobriram a medida certa entre interferir e estimular a criatividade dos artistas.

Mas também existem outros mais lembrados pelos maiores tropeços como Bob Harras e Dan Didio, que excederam a mão na forma de lidar com as equipes criativas.

Harras, isso tá na SUA conta

Harras, isso tá na SUA conta

Toda obra original passa por um processo material de produção que passa por várias mãos e diferentes interesses. O editor tem uma função crucial: ele é o intermediário, coletor, carrasco, protetor ou guia das ideias do autor que, em sua subjetividade artística (ou delírio sem noção) têm pouca sintonia com os gostos ou capacidades intelectuais do público que ele quer que seja alcançado. Sem editor o autor insula. Sem o autor, o editor é um instrumento de precisão sem uso.

Tal como os Sith. Ou uma chave inglesa.

Tal como os Sith. Ou uma chave inglesa.

 Quadrinhos são um misto singular de duas linguagens, visual e escrita. A visual fica pro outro dia. A escrita é aquela que desafia a fragilidade da memória. A escrita tem uma genealogia. Ela tem fases. Do insculpir em pedra ao papiro. Do papiro ao códice. Do códice ao livro. Do livro ao tablet.

codex sinaiticus St Catherine's

O Roger Chartier, historiador da escrita e literatura, ensinou que não só o processo material é determinante para a publicação de uma obra, ele altera a própria forma com que ela é criada pelo autor. Ele cita um jurista espanhol que em 1675 ressaltou que, no mínimo, o editor deve saber como:

“[…] colocar pontos de interrogação, pontos de exclamação e parênteses, porque frequentemente a intenção dos escritores fica pouco clara se esses elementos, necessários e importantes para a inteligibilidade e compreensão do que está escrito ou impresso, estão ausentes, porque se um ou outro estão faltando, o significado é alterado, invertido ou transformado.” (Melchor de Cabrera Apud Chartier, 2013, p. 30)

Ah, mas hoje em dia é moooito melhor! Posso tuitar ou postar no FB tooouuudo que tenho vontade!”

Não, hipotético adolescente de 16 anos de vernáculo estereotipado. Você pode publicar tudo DENTRO de um formato pré-determinado e que modula sua, digamos assim, originalidade, de forma automática. A editoração, no nível mais superficial, passou a ser tão mecânica que nem mesmo depende de um intermediário humano. 140 caracteres. “O que você está pensando”. É um ambiente intelectualmente habitável, mas criativamente estéril quando restrito apenas àqueles espaços ou alijado de diálogo real com outro ser-humano.

Resumindo: a produção intelectual, obra literária, em quadrinhos, musical etc, só se realiza enquanto dinâmica relacional, na interlocução entre autor, que serve como catalizador de um tema cultural e um editor, que serve como intermediário entre obra, condições materiais de produção e o público. “Autoria” individual, nesses termos, inexiste.  E isso não necessariamente é algo ruim.

O editor, silenciosamente, se trabalha bem, exerce uma função tão importante, e talvez ainda mais excruciante que do autor. Imagine, então, no caso de ter que fazer uma tradução, um trabalho vigiado por ele…

Kneel before editor

Kneel before editor

Se você se convenceu e acha tudo isso uma obviedade, uma pergunta inevitável. Não há editor que não esteja a serviço de um interesse, uma agenda, uma meta. Não há autor que queira esconder suas ideias. Quando você pensa no último bom quadrinho, livro, filme, peça ou música que leu, viu, assistiu ou ouviu, qual voz prevaleceu para dar a forma que aquela obra chegou a você?

Quem vigia os editores?

*Nota: Ex Libris significa “parte de”, um número ou edição parte de uma coleção seriada maior, de responsabilidade de uma equipe editorial. Coerente com o que aqui exposto, não há sequer uma única ideia original em todo este texto, Ex Libris Quadrinheiros.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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5 respostas para Ex Libris: a importância do editor nos quadrinhos

  1. Kleiton disse:

    Primeiramente, destaco que “Ex Libris” também significa “dos livros de”.
    Olha, gostei do texto. Mas há muitos autores que não admitem “retoques” em sua obra. Ou publicam como está, ou nada feito. São autores gabaritados pela crítica ou pelas grandes vendas. Além disso, hoje, temos o autor que “se banca”, que entrega o material pronto à editora e paga pelo trabalho de diagramação, edição, obtenção de ISBN, distribuição etc., que também não aceita pitaco. E existe sim o 100% independente e o underground, que edita seus quadrinhos (ou demais obras) como bem entende. Exemplo mais notório: Marcatti, que até mesmo imprime suas HQs na oficina dentre de sua casa.
    Enfim: há casos de interferência editorial. E há as exceções, que são muitas.
    No casos dos quadrinhos de mainstream, claro, quem decide é a Editora, a corporação. Mas, em seu texto, você estendeu isso a praticamente todo o material impresso, quase sem exceção.
    Abraços.
    Kleiton
    kleitongoncalves.blogspot.com.br

  2. Pingback: Os 10 Melhores Especiais de Natal dos Quadrinhos e TV | Quadrinheiros

  3. Velho Quadrinheiro disse:

    Kleiton,

    como você pontuou, autonomia editorial só em casos excepcionais: autor com renome (o nome virou uma marca), exigência de liberdade criativa… Mas nenhum deles passa livre de editoração, mesmo que ela ocorra no fundo da garagem do Marcati (aliás, dono de um talento excepcional).

    Como assim?

    Assim que a editoração que explorei aqui (bem superficialmente) significa processo de formatação, uma “filtragem” entre a obra bruta do autor e aquilo que o público é capaz de absorver. Esse processo (machina) pode ser automático (como nos blogs), extremamente sofisticado, como quando se alcança o ISBN, com a intermediação de especialistas de cada etapa da publicação, ou simplesmente ao mostrar pra algum amigo antes de publicar qualquer coisa.

    Por exemplo, como você imagina que os pensamentos de Sócrates chegaram aos ouvidos do professor de filosofia? Onde estão as “fontes originais”? Dos Constantinos aos Lascarinos, os escribas dos imperadores bizantinos fizeram enormes tesouradas nos clássicos gregos antes mesmo de chegarem nas mãos dos copistas monásticos. A mera tradução já é uma edição.

    Você acha mesmo que o Marcati, ou o Mutarelli, ou o Crumb em começo de carreira, não se submeteram a algum tipo de veto? Podemos não conhecer, pode não ser público, mas inevitavelmente isso acontece.

    A ideia aqui é a seguinte: não existe algo chamado “underground” porque, se você conhece, se você já leu ou ouviu, a obra deixou de ser underground para ser “upground”. Existe um mercado para o “independente” (indie), mas como tal, já caracteriza um estilo, comercialmente quotado.

    Opinião minha, única obra de arte absolutamente independente, livre e autônoma é o rabisco de sala de aula ou os escritos/desenhos em porta de banheiro público. Alguns são muito melhores que muita coisa que gastei dinheiro para ler. XD

  4. Pingback: UMA BREVE HISTÓRIA DO LIVRO – Blog de Ronald Monteiro

  5. Andreza Luana disse:

    Texto interessante e valioso. Irei citá-lo em minha dissertação.
    Obrigada!

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