O futuro passado: quadrinhos, sismógrafo do amanhã

Hillvalleyhover2015Desde a hora que acenderam a luz da existência, algum fulano com papel e lápis bolou que o futuro não seria mais como era antigamente e escreveu tudo pra ninguém esquecer. Foi o primeiro best-seller da história. E um baita sucesso do Legião Urbana. Da utopia infinita à devastação total, o amanhã guardava o mistério que nenhum habitante desse punhado de terra chamado Earth (pra não repetir o termo) deixou de imaginar: como vai ser o futuro?

Nada mais natural. Afinal, conceber o futuro seja talvez anterior a entender que a própria morte é inevitável. Pergunte a qualquer criança. Ou não, porque ela vai chorar e contar tudo pra mãe dela e você está em maus lençóis. Melhor, pense em você. Isso. Agora, pense comigo: que tipos de futuros já foram imaginados no passado? O que eles dizem sobre o tempo deles? Quadrinhos, esse sismógrafo da civilização, não deixa dúvidas.

Numa amostragem bem aleatória é possível reconhecer três “cenários” de futuro nos quadrinhos.

Característico da Era de Ouro, o primeiro cenário de futuro é essencialmente otimista, utópico, maravilhoso e assumidamente positivo.

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Buck Rogers (1933) e Flash Gordon (1936) eram seres humanos comuns (ou quase), como eu e você. Mas estavam deslocados de seu tempo e espaço, colocados em situações extraordinárias, aventuras interplanetárias formidáveis, desafiados por tiranos cruéis ou vilãs insidiosas. Tudo, porém, dava certo no final e o status quo era sempre restaurado. O futuro era o lugar reservado de todas as melhores ideias e virtudes.  

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A consagração máxima do futuro brilhante nos quadrinhos durante a Era de Prata foram as histórias da Legião dos Super-Heróis, criados em 1958. Aquele era o auto-proclamado ponto final da história do universo da DC. Jovens e brilhantes heróis zelavam pela paz, além de todas as barreiras do tempo e do espaço. Era a utopia absoluta.

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Na Era de Ferro, anos mais tarde, surgiu o segundo cenário do futuro nos quadrinhos. O cenário da distopia.

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Este era é a contramão do anterior, um futuro de pessimismo quase rancoroso. Ali, tudo deu errado, o mundo do amanhã estava em ruínas. A tecnologia foi usurpada. As virtudes violadas. A inocência massacrada. À maior parte dos heróis, mutilados pelo tempo, restava pouco mais que a mera sobrevivência e o alento da morte.

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Poucas histórias catalizaram tão bem este sentimento quanto Dias de um Futuro Esquecido (1981) ou A Era do Apocalipse (1995). É de se pensar a razão do sucesso de vendas que os X-Men desfrutaram ao longo de décadas no mercado de quadrinhos. Poucos heróis apanharam e sofreram tanto como os alunos da Escola Xavier para Jovens Super-Dotados.

O terceiro cenário de futuro é um meio termo, algo mais complexo, onde os sucessos da civilização não dissipam os prejuízos do vazio existencial.

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Criadas na “Era da Renascença” dos quadrinhos, a partir do final dos anos 90, estas são histórias mostram uma relação ambígua com o futuro. Ele não é exatamente um lugar agradável para se viver. É repleto dos mesmos males que marcaram os piores momentos no passado da humanidade. Mas também não está desprovido de fabulosas vantagens, como espetaculares novos heróis e milagrosas tecnologias.

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Tanto em Transmetropolitan (1997) como em Reino do Amanhã (1996), os protagonistas não negam a realidade “presente” em que vivem. Estão cientes da mediocridade que reina no tempo deles, mas fazem o possível para atenuar os danos de uma vida sem sentido.

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A relação com itens maravilhosos, como a tecnologia, nesse cenário nebuloso, é bem mais intimista, mais emocional. Mas jamais satisfatória. Nesse cenário de futuro, paira no ar um certo sentimento de nostalgia. Mas nostalgia de que?

Pense quando assistiu O Exterminador do Futuro. Ou Mad Max. Ou Blade Runner. Ou Matrix. São todos filmes futuristas, ambientados no futuro. Num sentido mais superficial, sem dúvida que os androides, os carros voadores, as lutas virtuais e as batalhas no fim do mundo eram sensacionais. Obras para se saborear com os olhos. Mas não foi por isso que você quis ter estes filmes na sua estante ou reviu mil vezes desde que foram lançados.

Além, claro, do melhor filme de toda a história da humanidade.

Tampouco por causa da melhor aula de física da história da humanidade

Da mesma forma, não deve ser pela qualidade visual de uma revista em quadrinhos de mais de 60 anos que um leitor fica fascinado com aquela história. Não. O fascínio das histórias retratadas no futuro tem uma mesma origem, uma narração implícita do como foi possível aquele cenário virar realidade.

Ora, não importa que a Legião dos Super-Heróis enfrentasse versões maléficas de Brainiac; o que importa é descobrir os indícios de como foi possível que tudo no universo DC deu certo até chegar naquele ponto.

Não importa que os X-Men tivessem sido caçados e mortos pelos Sentinelas; o que interessa é tentar descobrir como foi possível que eles tivessem fracassado tanto na sua missão de proteger mutantes e humanos.

Não importa saber que o Superman tem que domesticar seres tão ou mais poderosos do que ele; o que interessa é descobrir como foi possível que um bom herói do passado tenha sido substituído por tantos maus heróis no futuro.

O futuro passado explica muito sobre os medos e aspirações do presente em que foram criados. A pergunta é: qual é o futuro passado que o amanhã reserva para nós?

PS – Título assumidamente chupinhado do Reinhard Kosseleck, que é bom demais pra não ser lembrado.

PS 2 – Tema assumidamente furtado da Dra. Coronel Li, que soltou o verbo na qualificação mas não botou nada no papel.

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