Porque quando um gênio diz algo sobre outro é preciso prestar atenção.
Talvez uma introdução a introdução seja um exagero. No entanto, já se passaram 30 anos desde a publicação de O Cavaleiro das Trevas e também desde que Moore escreveu esta introdução à obra, o que torna algumas observações necessárias para uma melhor compreensão do texto.
O problema central no texto de Moore é que uma mudança no contexto histórico provocou uma mudança no público leitor de quadrinhos de super-heróis nos Estados Unidos, e a indústria passava por uma espécie de crise, pois estava se distanciando do público, tentando se reinventar para não morrer.
Ainda que os maiores emblemas dessa reinvenção que ocorreu em meados dos anos 80 sejam sem dúvida O Cavaleiro das Trevas, de Miller, e Watchmen do próprio Moore, inaugurando o que costumamos chamar de Era de Ferro, alguns sinais anteriores já eram claros – ao menos agora 30 anos depois.
Moore já havia plantado as sementes dessa renovação com sua fase em O Monstro do Pântano, iniciada em 1983 e já sinalizava o que seria a British Invasion e o selo Vertigo nas mãos de Karen Berger na DC. Na Marvel, os roteiros de Miller com o Demolidor salvaram o título do cancelamento em 1981, mostrando que o público ansiava por um tipo de história mais madura. Se quiséssemos voltar ainda mais no tempo, podemos dizer que os sinais dessa maturidade já se mostravam desde o início da Era de Bronze, em 1970.
Talvez hoje com as contribuições de Miller e Moore já assimiladas e diluídas pelo mainstream seja difícil entender porque aquela obra causou o impacto que causou, por isso a leitura dessa introdução é interessante para entender melhor esse fôlego que O Cavaleiro das Trevas deu aos quadrinhos de super-heróis.
Interessante no texto de Moore é sua percepção acertada de que aquela obra mudaria os rumos de toda a indústria. Hoje, passados 30 anos, é fácil afirmar isso. Moore já havia notado essa mudança no calor do momento. Mas não é só isso que a percepção aguda de Moore capta. Ele foi o primeiro a apontar o tom fascista da obra, já analisado nesse post.
Mas já tomei muito do seu tempo. Afinal, você não está aqui por mim. Sem mais delongas, o Mago.
A Marca do Batman: uma introdução por Alan Moore (1986)
Tradução: Nerdbully
Revisão: Velho Quadrinheiro
(Você pode ler o original aqui)
Como qualquer pessoa envolvida com ficção e na arte de fazer ficção mais ou menos nos últimos 15 anos gostaria de lhe dizer, heróis têm se tornado um problema. Eles não são o que costumavam ser, ou eles são, e aí é que está o coração do problema.
O mundo mudou e está continuamente mudando num ritmo acelerado. E nós também. Com o crescimento da cobertura de mídia e tecnologia da informação, nós vemos mais o mundo, compreendemos seu funcionamento um pouco mais claramente, e como resultado nossa percepção de nós mesmos e da sociedade que nos cerca tem se transformado. Consequentemente, nós começamos a esperar coisas diferentes da arte e cultura que reflitam essa constante mudança. Nós esperamos novos temas, novos insights, novas situações dramáticas.
Nós esperamos novos heróis.
Os heróis ficcionais do passado, ainda que mantendo todo o charme e poder e magia, foram despidos da sua credibilidade como resultado de uma nova sofisticação de seu público. Com o benefício da retrospectiva e de uma melhor compreensão do comportamento de primatas, o autor de ficção científica Philip Jose Farmer foi capaz de demonstrar de maneira bem convincente que o jovem Tarzan provavelmente teria explorado sua sexualidade com jovens chimpanzés e não teria nenhuma aversão a comer carne humana como Edgar Rice Burroughs o retratou. Conforme nossa consciência política e social se desenvolve, Alan Quatermain revela-se apenas como mais um branco imperialista querendo explorar os nativos e começamos a perceber que o traço dominante na máscara psicológica de James Bond é seu intenso ódio e desprezo pelas mulheres. Se nós preferimos apreciar as aventuras dos cavalheiros mencionados acima sem estragá-las com implicações sociais é irrelevante. O fato é que nós mudamos junto com nossa sociedade e se tais personagens tivessem sido criados hoje eles seriam alvo da mais alta suspeita e crítica.
Então, a não ser que fiquemos sem heróis, como os criadores de ficção farão para redefinir suas lendas para o contexto atual?
O cinema e a literatura têm conseguido resolver o problema de forma madura e inteligente, talvez porque tenham um público maduro e inteligente capaz de apreciar e apoiar tal mudança.
Os quadrinhos, vistos desde sua criação como uma mídia juvenil onde qualquer inserção de temas e abordagens adultas estarão sujeitas a vaias estridentes e ameaças de censura, não tiveram tanta sorte.
Enquanto que nos livros e cinema nós temos sido apresentados a conceitos como o de anti-herói ou do herói clássico reinterpretado de uma maneira contemporânea, nos quadrinhos ainda temos os mesmos heróis musculosos trocando sopapos.
Conforme a ingenuidade dos personagens e o absurdo das situações se tornam progressivamente ridículas e anacrônicas aos olhos modernos, assim também o problema se torna mais sedimentado e delicado.
Deixados para trás em comparação com outras mídias, como os quadrinhos vão reinterpretar seus ícones tradicionais para manter o interesse de um público que tende a fugir dos quadrinhos? Obviamente, o problema só pode ser resolvido por pessoas que entendem esse dilema e, mais que isso, possuem igual compreensão dos heróis e do que os faz funcionar.
O que me traz à Frank Miller e ao Cavaleiro das Trevas.
Ao decidir aplicar seu estilo e sensibilidade ao Batman, Frank Miller apresentou uma solução às dificuldades acima mencionadas que é tão impressionante e elegante como nenhuma outra que eu já tenha visto.
Mais impressionante ainda, ele conseguiu fazer isso com um personagem que, na visão de um público que existe além do relativamente estreito público dos quadrinhos, caracteriza como nenhum outro a essência do ridículo do herói de histórias em quadrinhos.
Quaisquer que tenham sido as mudanças nos quadrinhos, a imagem do Batman permanentemente fixada na mente do público em geral é a de Adam West todo sério recitando algum diálogo idiota escalando uma parede graças ao estupendo efeito especial de uma câmera. Dar tamanha credibilidade aos olhos de um público não necessariamente apaixonado por super-heróis e tudo o que lhes são próprios não é um feito a ser desconsiderado, e talvez seria apropriado olhar um pouco mais de perto o que Miller fez. (Eu espero que Frank me perdoe por chama-lo de “Miller”. Parece um tanto mal-educado e eu certamente jamais faria isso em sua presença, mas de algum modo é assim que você chama alguém que conhece bem quando está escrevendo introduções para seus livros.)
Ele pegou um personagem cujo todo detalhe trivial e acidental está cravado em pedra nos corações e mentes dos fãs de quadrinhos que compuseram seu público e conseguiu redefinir o personagem dramaticamente sem contradizer sequer um mínimo detalhe de sua mitologia.
Sim, o Homem Morcego ainda é Bruce Wayne, Alfred ainda é seu mordomo e o comissário Gordon ainda é o chefe da polícia, ou quase. Ainda há um sidekick cujo nome é Robin, junto com o batmóvel, a batcaverna e o cinto de utilidades. O Coringa, o Duas-Caras e a Mulher-Gato ainda estão em evidência entre os vilões. Tudo é exatamente o mesmo, exceto pelo fato de que tudo está totalmente diferente.
Gotham City, um lugar que durante os quadrinhos dos anos 40 e 50 parecia um playground urbano cheio de máquinas de escrever gigantes e outros aparatos gigantescos, torna-se algo muito mais terrível e depressivo nas mãos de Miller.
Uma sombria e hostil cidade em decadência, povoada por gangsters sociopotas incontroláveis, parece-se mais com as massas urbanas que podem muito bem existir em nosso próprio desconfortável futuro próximo.
O próprio Homem-Morcego que se aproxima de nossa atual percepção dos vigilantes como uma força social nos moldes de Bernie Goetz [saiba quem é clicando aqui], é visto pela mídia como um quase fascista e um fanático perigoso, enquanto que psiquiatras clamam pela liberdade do homicida Coringa sob pretextos estritamente humanitários.
Os valores do mundo que nós vemos não estão definidos nos termos claros, brilhantes e primários das cores das histórias em quadrinhos, mas em tons bem mais sutis e ambíguos fornecidos pela belíssima palheta de Lynn Varley e suas sublimes sensibilidades.
A mais imediata e notável diferença é obviamente o modo como tanto o Batman quanto Bruce Wayne são retratados, o homem por trás de máscara. Representado ao longo dos anos ou como um benevolente campeão da justiça ou como um psicopata em busca de vingança, o personagem apresentado aqui acolhe as duas interpretações facilmente integrando-as em uma personalidade maior e mais persuasiva. Cada sutileza na expressão, cada nuance na linguagem corporal serve para mostrar que esse Batman tornou-se o que ele sempre deveria ter sido: Ele é uma lenda.
A importância do mito e da lenda como um subtexto para O Cavaleiro das Trevas não pode ser superestimada, ainda que brilhe a cada página. A familiar sequência de origem do Batman com um pequeno morcego entrando por uma janela aberta a inspirar um contemplativo Bruce Wayne torna-se algo muito mais religioso e apocalíptico nas mãos de Miller; o morcego transforma-se numa gigante e ameaçadora quimera saída das mais sombrias fábulas europeias. As últimas cenas do Batman em um cavalo evoca desde a cavalaria da Távola Redonda até a chegada na cidade de Clint Eastwood, servindo para demonstrar sua qualidade mítica, bem como o retrato da antiga relação entre Batman e Superman: o Superman que vemos aqui é um deus terrestre cuja presença é anunciada apenas pelo vento da destruição deixado pelo seu despertar. Ao mesmo tempo, sua duvidosa posição como um agente do governo dos Estados Unidos leva a uma situação realisticamente incrível e leva ao casamento perfeito entre a essência da lenda e a essência da realidade do século XX.
Além das imagens, temas e o romance essencial do Cavaleiro das Trevas, Miller também conseguiu transformar o Batman em uma verdadeira lenda ao introduzir o elemento sem o qual todas as verdadeiras lendas se tornam incompletas, e ainda assim por alguma razão dificilmente parece existir no mundo representado por uma história em quadrinhos tradicional, e esse elemento é o tempo.
Todas as nossas melhores e mais antigas lendas reconhecem que o tempo passa e que as pessoas envelhecem e morrem. A lenda de Robin Hood não seria completa sem a flecha para mostrar o local de seu túmulo. As lendas nórdicas perderiam muito de seu poder caso não houvesse o inevitável Ragnorok, bem como a história de Davy Crockett sem a existência de um Alamo. Nos quadrinhos, entretanto, dado o fato comercial que um personagem deve ser vendido para um determinado público por 10 anos, esses elementos não existem. Os personagens permanecem no eterno limbo de seus 20 e poucos anos e a presença da morte em seu mundo é na melhor das hipóteses um fenômeno reversível.
Com O Cavaleiro das Trevas o tempo chegou ao Batman e a pedra angular que faz as lendas ser o que são foi finalmente assentada. Em sua envolvente história de um grande homem em sua última e maior batalha, Miller conseguiu criar algo radiante que deve influenciar todo o universo dos quadrinhos, jogando uma nova luz sob problemas presentes para todos nós que trabalhamos na indústria e talvez nos guiando para algumas novas soluções. Para aqueles de vocês que já consumiram O Cavaleiro das Trevas em sua versão capa mole, fiquem tranquilos pois nas suas mãos está um dos poucos quadrinhos que são genuinamente um divisor de águas, digno de uma edição mais duradoura. Para o resto de vocês que estão prestes a entrar em um território totalmente novo, eu só posso expressar minha extrema inveja. Vocês estão prestes a encontrar um novo nível de contar histórias em quadrinhos. Um novo mundo com novos prazeres e novas dores.
Um novo herói.
Alan Moore
Northampton, 1986
Alan Moore é aquele caso de amor ou ódio por parte dos leitores e da crítica, acho que isso se deve ao seu gênio e a sua visão única das HQs e dos seus personagens. Vendo a obra de Miller ele percebeu a porta que se abria para o futuro dos quadrinhos e como tudo mudaria. Se hoje temos grandes obras no mundo das HQs, devemos muito a esses visionários.
Sem dúvida, Giulianno. Abraço.
Meu caro, essa introdução por Alan Moore foi publicada em alguma das reimpressões no Brasil?
Não que eu saiba, Dickson.
O texto era inédito em português – agora deixou de ser com a tradução. Belo trabalho de tradução.
Linkado e comentado em facebook.com/alanmoorebr
Obrigado! Muito bom saber que vocês gostaram. Abraço!
Excelente trabalho! Muito bom! Já estou pensando em comprar a versão importada para ter uma edição do “Batman: The Dark Knight Returns” com introdução de Moore! Perfeito!
Pingback: A historicidade de Conan: entre Robert E. Howard e Jason Aaron | Quadrinheiros