Pois é, hoje em plena estreia de Homem-Aranha 2 vamos falar do Demolidor, cuja primeira aparição foi em abril de 64 por Stan Lee, Bill Everett e Jack Kirby, portanto completando 50 anos esse ano, fato que foi aparentemente ofuscado pelos 75 do Batman.
Você sabe quem é o Demolidor? Se sabe, o que sabe sobre ele? Seus conhecimentos sobre o personagem vem principalmente do filme estrelado por Ben Affleck ou você já leu alguns quadrinhos estrelados pelo Homem sem Medo?
Calma, isso não se trata da Inquisição, mas sim de pensar um pouco nas lembranças que formamos de um personagem e se constituem na nossa visão sobre ele. No mercado dos quadrinhos quantas mudanças e retcons, introdução e reintrodução de novos e velhos personagens não ocorrem? A maioria delas sendo solenemente ignoradas depois e nunca mais retomadas, algumas poucas se consolidando nos corações e mentes dos leitores.
A intenção principal desse texto é analisar um pouco os processos que contribuem para que uma versão do personagem se estabeleça como sendo “clássica” ou válida, de maneira que se cristalize uma identidade para ele nas pessoas que o acompanham. É essa análise que chamei metaforicamente (e pretensiosamente) de “arqueologia”, pois se trata de escavarmos um pouco e descobrirmos as várias camadas que compõem o personagem.
Como arqueólogos não vamos seguir uma ordem cronológica aqui, muito menos fazer uma biografia do Demolidor, mas vamos da camada mais superficial para a mais profunda, sem intenção de esgotar todas aqui.
O Demo
Aqui no Brasil essa arqueologia tem uma particularidade que começa no próprio nome do personagem. Se traduzirmos Daredevil ao pé da letra seria algo como Intrépido ou Destemido (e já vi em uma dublagem de algum desenho do Homem-Aranha usarem essa tradução. Depois ainda dizem que a dublagem brasileira é uma das melhores do mundo, imagino as piores). Numa tradução mais livre e poética, separando os termos teríamos dare, que literalmente é desafiar e devil, demônio, aquele que desafia o demônio e, portanto, a explicação do epíteto do personagem, o homem sem medo. Nenhuma dessas traduções faria muito sentido.
O uniforme do personagem evoca um demônio. No seu peito há duas letras D garrafais (DareDevil). Como conciliar?Demolidor. O D essencial no uniforme do personagem estava garantido, bem como uma associação com o Demônio… O Demo… Demolidor… sacaram?
O Filme
Todos os elementos clássicos estão lá: a amizade com Foggy Nelson, sua relação com Elektra, os inimigos Mercenário e Rei do Crime, sua relação com o pai que o marca como herói e seu lado atormentado buscando redenção. Mesmo muita gente reclamando foi partir desse filme que o herói ficou conhecido pelo grande público (e eu sinceramente acho um bom filme), mas o fato de Stick não aparecer – e consequentemente as habilidades marciais do herói ficarem sem explicação – não foi perdoado pelos fãs.
Mark Waid
A abordagem de Waid difere em muito do que é estabelecido pela concepção clássica de Frank Miller. Nela vemos um Matt Murdock que encara sua cruzada como super-herói de maneira leve e não como um fardo, que prefere agradecer por seus super-poderes à lamentar a perda da visão e nada de culpa cristã. Nada de relacionamentos tortuosos com Karen Page ou Elektra, mas algo mais leve com Kirsten McDuffie.
O que pouca gente sabe é que Matt Murdock já vestiu essa personalidade no início de sua carreira. Nos anos 60, creio que em Daredevil #16, a identidade secreta do Demolidor foi revelada e Matt Murdock criou uma terceira identidade, seu irmão gêmeo Mike Murdock, cuja personalidade lembra muito o Matt Murdock de Waid. Curioso notar também que nos anos 60 o Demolidor desenvolveu um caso de dupla personalidade, a ponto de não saber quem era seu verdadeiro “eu” – se Matt ou Mike – e, no arco de Waid, Foggy Nelson começa a achar que seu amigo é louco devido – entre outros fatores – a sua brusca mudança de personalidade. Mais uma camada sob outra camada em nossa arqueologia.
Além disso, inimigos clássicos ressurgem como o Metalóide e aparições do Homem-Aranha e Vingadores são recorrentes, para sabermos que estamos num universo de super-heróis. O tom pesado do Demolidor como um vingador urbano atormentado cede para o lado heroico. Uma releitura/atualização da Era de Prata bem ao gosto de Waid, e ao que parece caiu no gosto dos leitores, tanto daqui como dos EUA. O arco está sendo publicado em encadernados pela Panini, vale a pena conferir. Comentamos essa fase no vídeo abaixo:
Kevin Smith
Kevin Smith se apropriou da herança de Frank Miller de um modo um tanto concreto demais. Exagerou os traços religiosos do personagem, fazendo-o sofrer de um alto grau de culpa cristã e ainda por cima ter seu amor, Karen Page (que já tinha sido drogada e ex-atriz pornô) portadora do HIV. Como se não bastasse Smith ainda a fez morrer nas mãos do Mercenário, como Elektra anos antes. Smith acentuou os traços deixados por Miller. O arco escrito por Smith, O Diabo da Guarda, está na coleção de encadernados da Salvat.
Frank Miller
Miller é o responsável pelos elementos mais cristalizados no Demolidor: seu treinamento ninja com Stick, sua relação com Elektra, e o Mercenário e o Rei do Crime como seus principais antagonistas, bem como a ideia de que o herói seria a representação máxima do herói cristão/católico se corroendo em culpa enquanto busca por redenção. Para sua narrativa com o herói, Miller também o isolou do Universo Marvel, criando uma atmosfera própria para um vingador urbano atormentado. Dizer mais é chover no molhado. Há alguns anos foi publicada uma série de quatro encadernados pela Panini com essa fase que vale a pena conferir.
* * *
Vejo muitos leitores encararem personagens como “entidades metafísicas”, dizendo “tal personagem é assim” ou “tal personagem não é assim”. Isso na verdade fez parte durante muito tempo das estratégias das grandes editoras (DC e Marvel) para não darem o devido crédito aos roteiristas, argumentando justamente que os personagens são maiores que os autores que passam por eles. Na verdade os roteiristas são importantes por que cada um acrescenta uma camada à concepção de cada herói que se cristaliza na mente dos leitores. Os melhores pelo menos conseguem isso.
Então, o que é o Demolidor? Nada mais do que o resultado dessas – e outras – camadas.
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