O que cada morte fala sobre os heróis, sobre os quadrinhos e sobre nosso próprio tempo.
“Hey, xará”, diria Wolverine, o Logan, se tivesse tomando um trago no balcão sujo do Bar Princesa, em Madripoor. Puxe um banco. Escolha sua bebida. Tome uma com a gente.
Que fique claro. Este é um post sobre o Wolverine. E tem spoilers do filme mais recente, Logan (mas só na parte final do texto). Se você não viu ainda, olha, é melhor se mandar pra ver. A gente espera.
Pronto?
Então vamos lá.
Quando surgiu nos quadrinhos, o Wolverine não era nada de mais. Criado por Len Wein, Roy Thomas e John Romita Sr., ele apareceu numa revista do Hulk (The Incredible Hulk, n. 181, 1974) com o único propósito de antagonizar o Monstro Verde naquela edição. Ele era um agente do governo canadense e nada mais. Note-se a ênfase em antagonizar: era um sujeito baixinho, vestido de amarelo, com garras afiadas.
Depois, ele reapareceu na lendária edição que “relançou” os heróis mutantes, que minguavam nas bancas: Giant Size X-Men n.1, de 1975. Foi quando o Prof. Xavier recrutou Wolverine, Tempestade, Colossus, Noturno, Banshee e Pássaro Trovejante, uma equipe formada por personagens de diferentes nacionalidades e deixando o grupo de mutantes efetivamente mais diverso e interessante.
O desenhista Dave Cockrum e o roteirista Len Wien, naqueles meados dos anos 70, deram pouco destaque a Wolverine, exceto pela sutil tensão que ele provocou na relação com Jean Grey e Scott Summers, formando um triângulo amoroso.
Naqueles primórdios da Era de Bronze (1970-1985), os heróis ainda tinham um pé no “bom-mocismo”, mas era uma intenção prestes a desmoronar. E Wolverine parece ter sido o avatar dessa erosão. John Byrne e Chris Claremont, autores que “herdaram” a produção das revistas dos X-Men entre 1975 e 1985, moldaram a personalidade de Wolverine e de certa forma, da própria Era de Bronze.
Diferente de Batman ou do Superman, do Homem de Ferro ou do Homem-Aranha, Wolverine era um assassino vestido de super-herói. Um sujeito brutal com a missão de salvar e proteger humanos e mutantes. Ora, Logan, como nenhum outro X-Men tinha sido de verdade, era um desajustado, um paradoxo, uma contradição. Ideais de justiça, paz, respeito e harmonia que ele deveria representar eram irreconciliáveis com a realidade de morte, violência, injustiça, opressão, preconceito. Diferente de outros heróis, ele trazia uma esmagadora sensação de decepção que despontava ao fim daquela jornada. Byrne e Claremont parecem ter enxergado isso. E esse passou a ser o mote das melhores histórias dos X-Men a partir de então. O destino certo dos X-Men era a morte.
Quando não eram insinuadas como possibilidade a ser evitada, a morte dos heróis mutantes era tema principal das histórias, o que de certa forma se propagou como uma característica. A morte do Pássaro Trovejante. A morte de Jean Grey. A morte do professor Xavier. A morte do Anjo. A morte de Tempestade. A morte de Colossus. A morte de Noturno. A morte de Ciclope. Todos, em um momento ou outro da cronologia dos X-Men foram pro saco, de forma mais ou menos heroica dependendo do caso.
(E todos, sem exceção, ressuscitaram, variando apenas aquelas mortes que “pegaram”, como a de Jean Grey, que atualmente ainda está falecida)
Graças ao seu fator de cura, o Wolverine trazia a esperança de ser a exceção a este destino fatal. Tanto melhor para os roteiristas das histórias, que de “N” formas colocaram aquelas habilidades mutantes ao teste de fogo. Mas como as lições mais duras da vida, nem Logan podia escapar do próprio destino e a morte dele, de formas diferentes, revela muito sobre ele mesmo, o peso que ele tem nos quadrinhos e o mundo que vivemos.
De várias “quase mortes”, ou até de mortes simbólicas que já marcaram a vida do herói, três mortes de Wolverine merecem destaque:
1ª morte – Dias de um Futuro Esquecido (Uncanny X-Men n. 142, Fev/1981)
A Saga da Fênix Negra (1980), para o choque das jovens sensibilidades dos leitores, revelou que heróis podem, sim, morrer. Mas Dias de um Futuro Esquecido agravou a extensão do desconsolo quando uma rajada de um robô Sentinela pulverizou Wolverine. Grisalho mas ainda mortal, ele investiu numa heroica – e vã – tentativa de salvar a espécie mutante, confinada a campos de concentração num futuro desalentador.
Nesta história, os mutantes foram despidos de sua humanidade e eram tratados como uma sub-raça, a ser segregada e exterminada, um cenário onde as características mais animalescas de Logan, sua violência e letalidade, vêm bem a calhar, um ambiente que, de certa forma, ele é o mais apto dos sobreviventes. No entanto, em seu ato final, Logan é leal aos princípios de Xavier, sob a esperança de um destino melhor para ele e seus companheiros.
Esta história, assim como o destino desta versão futurista de Wolverine, se tornou a “alma” dos enredos de X-Men. Retrato obscuro da realidade narrada em quadrinhos, era um alerta sobre o destino reservado a um mundo que, em nome da “segurança”, identifica, segrega e oprime pessoas por meio de uma tecnocracia cega.
2ª morte – A Morte de Wolverine (The Death of Wolverine n. 4, out/2014)
Em 2013, após a saga X-Men versus Vingadores, que terminou com o assassinato do Prof. Xavier por Ciclope, os títulos dos X-Men foram divididos em duas principais revistas: Uncanny X-Men e All New, All Different X-Men.
Em Uncanny eram narrados os passos de Ciclope liderando um grupo de mutantes em atos cada vez mais violentos, uma espécie de célula terrorista/revolucionária em nome da causa mutante, de modo mais radical aos métodos de Magneto.
Na contra-mão, mostrado nas histórias de All New, All Different, estava Wolverine, que após romper com Ciclope, fundou uma nova escola, a Jean Grey School for Gifted Youngsters, acreditando que o melhor caminho para o convívio de humanos e mutantes era a educação, seguindo os passos de Charles Xavier.
Wolverine e Ciclope tiveram seus papéis invertidos. Antes, Wolverine era o assassino sanguinário disposto a matar e morrer pelos mutantes, papel que passou a ser representado por Ciclope. Antes o melhor aluno de Xavier, Ciclope era o tenaz protetor de mutantes e humanos, disposto a qualquer sacrifício para trazer inocentes à segurança, função que Wolverine tomou para si após testemunhar e praticar atos horríveis em nome da causa mutante.
A Morte de Wolverine mostra o desfecho desta trajetória do lado de Logan. Por mais que ele tente, não pode escapar das suas origens, do Projeto Arma X que implantou a liga de adamantium nos seus ossos, nem se omitir diante da repetição daquela experiência.
Ali, o Dr. Cornelius, que aperfeiçoou o procedimento que criou Wolverine, está prestes a concretizar seu experimento, ou seja, criar mais armas mutantes, como o próprio Wolverine. Ciente de sua própria natureza assassina ele faz o derradeiro sacrifício para impedir que existam outros indivíduos como ele no mundo. Ao se sacrificar, Logan estaria tornando o mundo um lugar mais seguro.
3ª morte – Logan (filme James Mangold, 2017)
Entre 2000, ano em que foi lançado o primeiro X-Men, e 2017, depois de 9 filmes, o Wolverine teve seus altos e baixos, exceto por um único fator: a interpretação magistral de Hugh Jackman. Assim como é impossível pensar no Homem de Ferro com outra face além de Robert Downey Jr., Jackman ancorou a imagem de Wolverine para muitos que jamais tinham ouvido falar do herói nos quadrinhos. Passados alguns dias após a estréia do filme, parece unânime dizer que este é de longe a melhor encarnação do herói no cinema, grande parte, por ser a derradeira história do herói interpretada pelo ator. A explicação para a aceitação do público e crítica sobre o filme reside numa sincronia entre a idade “avançada” de personagem e seu intérprete.
Que seja.
Um dos muitos méritos do filme é afirmar de uma vez por todas que Logan, James Howlett, o Wolverine é um assassino – algo que os quadrinhos têm alguma dificuldade de mostrar. Simples assim. O torturante desfecho do “herói”, que dura duas horas e dez minutos de filme, é uma celebração da contradição que apenas ele, que vive sob aquelas cicatrizes, tem consciência: Logan não é, nem nunca foi, o que o mundo gostaria que ele fosse. E isso é um fardo mais pesado que todas as dores que sentiu e mortes que ele provocou.
Pontuado de forma respeitosa ao longo do filme, o enredo canaliza as influências nos faroestes clássicos, em especial, Os Brutos Também Amam, filme de George Stevens de 1953.
O monólogo de Shane, interpretado por Alan Ladd, sem nenhuma vergonha, é recitado por completo como epitáfio de Laura (a X-23) para Logan, testemunhado por crianças que, como nós mesmos, gostariam que houvesse um mundo em que heróis pudessem viver no final.
“Joey, não é possível viver com… com a matança. Não há como voltar atrás depois que ela começa. Certo ou errado. É uma marca. E essa marca não sai. Não há como voltar. Agora vá para casa, para sua mãe e diga a ela… Diga que está tudo bem. E diga que não há mais nenhuma arma no vale.”
Os Brutos Também Amam foi um dos maiores clássicos do faroeste americano, e ao lado de Rastros de Ódio (1956), de John Ford, ou Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks, marcou a “era de ouro” dos faroestes.
Ao permitir que o personagem assumisse suas próprias contradições, o filme Logan, finalmente, deixou Wolverine crescer para além das amarras da Era de Bronze.
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