O que uma super-vilã está fazendo no topo do mercado dos quadrinhos de super-heróis?
No final de 2016 (pouco depois do lançamento de Esquadrão Suicida nos cinemas), o editor da DC Comics, Jim Lee, confirmou que a empresa iria aumentar o número de publicações relacionadas à personagem Arlequina. Nas palavras de Lee, ela seria o quarto pilar (em vendas) da editora, atrás de Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Esse status vem sendo reiterado pelos pedidos recentes das comics shops – a edição número 1 da fase Rebirth da personagem ultrapassou todos os outros títulos.
Mas o que uma super-vilã, com histórico de abuso e doença mental, está fazendo no topo do mercado dos quadrinhos de super-heróis?
Há 25 anos o roteirista da série animada do Batman, Paul Dini, pensou em uma cena em que alguém entrega um bolo para o comissário Gordon e de dentro desse bolo saía o Coringa. Esse assistente do vilão poderia ser apenas um capanga genérico, mas Dini resolveu criar uma personagem nova para a cena. Nascia assim Harley Quinn, a arlequina com voz de criança que não hesita em puxar uma faca quando está acuada.
Dois anos depois de sua estreia, a origem da personagem foi contada em uma edição especial em quadrinhos (que não fazia parte da cronologia oficial da DC). A história Mad Love mostra Harley lembrando de como se tornou Arlequina, quando se apaixonou pelo seu paciente no asilo Arkham. No fim da história a Arlequina decide matar o Batman e é impedida pelo Coringa de forma violenta (abuso físico). Ela volta para o Asilo Arkham decidida a esquecer o palhaço do crime e se curar, mas lá encontra flores e um cartão e volta a se apaixonar pelo vilão (abuso emocional). Essa história foi adaptada para a animação da TV no mesmo ano em que a personagem entrou para as histórias em quadrinhos.
Na cronologia oficial ela entrou para o universo do Batman no meio da saga No Man’s Land em 1999. Harley relata sua história de origem, algumas incursões ao lado do Coringa e de seus capangas, onde ela é repetidamente abandonada, drogada, física e psicologicamente abusada (sem contar o abuso sexual, que fica implícito). Em todas as vezes ela se apega às promessas de amor e realimenta sua obsessão pelo vilão.
De 2001 a 2003 a série solo da personagem (que ganhou seu próprio título por causa do sucesso de vendas), mostrava mais acontecimentos desconcertantes. Na edição número 8 descobrimos que o suicídio de seu namorado, quando os dois ainda estavam na faculdade, é o que despertou em Harley a obsessão pelo Coringa.
Em 2007 (Batman #663) ela ajuda o Coringa com um plano para eliminar todos os seus antigos capangas, e descobre que o plano do palhaço era eliminá-la também. Ela então pega uma arma e dilacera o ombro do vilão. No fm da história, enquanto Batman arrasta o palhaço do crime para dentro da cela do Arkham, Harley diz ao vilão que tudo que ela queria era mais atenção e pergunta se ele não a ama mais. Toda a dinâmica dessa história emula uma cena típica de abuso doméstico.
De 2009 a 2011 Harley Quinn se junta à Mulher-Gato e Hera Venenosa no título Gotham City Sirens. Na edição número 7 somos apresentados à família disfuncional da psiquiatra Harleen Quinzel (seu nome verdadeiro). Seu pai está na prisão, seu irmão não saiu da casa dos pais e não deu um rumo para sua própria vida, e a relação dela com a mãe é passiva / agressiva. Nos encontros com o Coringa (edição 24, por exemplo) ela é forçada por ele a escolher entre libertá-lo do Asilo Arkham ou salvar sua amiga Hera Venenosa.
Na continuidade dos Novos 52, uma nova origem e um novo traje. Na edição número 7 de Esquadrão Suicida vemos o Coringa levando sua terapeuta até a ACE Chemical, onde um dia ele caiu em um tonel de produtos químicos. Antes que ela consiga fugir, o Coringa a atira em um tonel e repete o processo, criando assim a Arlequina de cabelos coloridos e poucas roupas. Mais para frente nessa fase, a personagem passa a administrar um prédio em Coney Island e começa uma relação afetiva (não exclusiva) com a Hera Venenosa. Importante destacar que essa fase foi roteirizada por uma mulher – Amanda Conner.
Após este arco veio uma das maiores polêmicas envolvendo a personagem – o concurso para novos artistas que deveriam desenhar uma página na qual a personagem é induzida a cometer suicídio pelo Coringa (Break into comics with Harley Quinn!). As cenas que mostravam as tentativas frustradas de Harley de acabar com a própria vida eram espalhafatosas, engraçadas e terminavam com ela nua em uma banheira. Tratar um assunto extremamente delicado de forma assim tão displicente, fez com que as redes sociais se incendiassem. A DC resolveu não publicar a cena da banheira no fim do concurso.
No momento, na linha Rebirth da DC, ela aparece em seu título próprio além de ter se tornado a líder do Esquadrão Suicida no título do grupo.
Assim como o Batman em sua origem é uma criação oposta em tudo ao Superman, podemos fazer essa mesma comparação entre Harley Quinn e a Mulher Maravilha, embora a criação da Arlequina não tivesse intenção equivalente. O arco da Arlequina começa marcado pelo abuso físico e mental, pela violência e a fragilidade da personagem em quebrar tal ciclo. Quando ela se junta a outras mulheres, começa a se afastar de seu abusador (Coringa, mas também o Batman e outros personagens masculinos), e vai aos poucos ganhando autonomia. O relacionamento dela com a Hera Venenosa é ao mesmo tempo uma metáfora sobre a busca de um modelo matriarcal que se contrapõe ao modelo opressor do patriarcado, e um fetiche masculino que reforça a submissão a esse mesmo modelo.
Em oposição a isso, a Mulher-Maravilha vem de uma sociedade matriarcal e chega ao mundo dos homens já formada com seus valores e senso de justiça. As relações que ela estabelece nesse mundo patriarcal são saudáveis porque ela tem bases emocionais sólidas. Mesmo que existam mistérios em seu passado e problemas cotidianos, ela tem recursos internos para administrar essas surpresas. Já a Arlequina não tem uma estrutura interna sólida onde ela possa se abrigar.
As duas personagens tentam influenciar / transformar o mundo (dos homens), mas enquanto a Arlequina faz isso de dentro pra fora, com violência e caos, a Mulher-Maravilha faz de fora pra dentro com diplomacia e ordem. A tendência é Harley ver os homens como inimigos (não sem justificativa!). Diana vê os homens como iguais. E entre esses dois espectros, a cultura pop vai abrindo nossos olhos para as questões cruciais do complexo século XXI.
Pingback: Heróis e Estados Unidos em crise por Tom King | Quadrinheiros