Superman versus Batman: quem é o verdadeiro Übermensch?

SupermanBatman_53_page_1_by_BakanekoneiA associação entre o conceito nietzschiano de Übermensch com o Superman é tão antiga quanto o próprio personagem de Siegel e Shuster. Mas isso se deve mais a uma tradução dúbia que propriamente uma proximidade real entre as duas figuras. Talvez o Batman esteja mais próximo do Übermensch de Nietzsche que o próprio Superman. 

Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil temos o mesmo problema de tradução. Lá o termo foi inicialmente traduzido por Superman e aqui por Super-Homem, causando a associação imediata entre as duas figuras. O prefixo latino “super” pode indicar tanto superioridade quanto excesso, e aí a origem do equívoco. O Übermensch nietzschiano é “superior” ao homem, mas não é um homem “em excesso”. Posteriormente houve algum consenso entre os tradutores e tanto lá quanto cá houve uma mudança: Overman nos EUA e Além-do-Homem por aqui.

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Não obstante, muitos roteiristas que passaram pelo Homem de Aço fazem explicitamente essa associação, dentre eles – e apenas para ficarmos com um célebre exemplo – Grant Morrison em seu All Star Superman. Ainda que ele mesmo diga que o Superman é uma espécie de Cristo norte-americano, com isso afastando qualquer possibilidade de aproximação entre o Superman e o Übermensch, a associação entre as duas figuras foi forte o suficiente para que aparecesse nesse quadrinho que sintetiza o personagem como nenhum outro.

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Antes de avançarmos, uma breve definição sobre a figura do Übermensch em Nietzsche. O conceito está ligado à outra temática profundamente nietzschiana que é a morte de Deus. Na verdade, quando Nietzsche diz que Deus está morto ele está dizendo que os valores metafísicos estão mortos, que não há mais possibilidade de se pensar em termos metafísicos, com tudo o que isso implica de mais cruel: que não há um “plano” divino por trás de nada, nem um fim último a ser perseguido, como, por exemplo, o Progresso da Humanidade (e não propriamente que um velho barbudo tomou um tiro na testa, como a maioria das pessoas encara).

Nesse momento há várias reações possíveis: ou tenta-se a todo custo “ressuscitar” esses valores transcendentais, ou se é tomado por um sentimento de que “nada mais vale”, o que leva a um imobilismo ou ainda à destruição pura e simples (uma vontade de nada, também um niilismo reativo). Mas o Übermensch escapará disso: ele é aquele que criará novos valores.

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O Übermensch é ainda uma meta, um horizonte a ser seguido pelo homem. Diz Nietzsche que “o homem é alguma coisa que deve ser superada”, e é justamente o fato de ser apenas uma ponte entre o macaco e o Übermensch aquilo que deve ser valorizado no homem. Ele é meio e não fim.

O Übermensch de Nietzsche não pode ser o Superman. E por quê? Porque o Superman não está “além” do homem, mas, ao contrário, é o homem elevado à enésima potência, o homem realizado em toda a sua potencialidade, um ideal a ser seguido pelo homem, que o conduz a ser simplesmente mais do que é e não a uma superação do que é (aqui, obviamente, “superação” significa uma mudança de natureza e não de grau – um homem “melhor” continua sendo homem). Em outras palavras, ele está mais próximo de outro conceito nietzschiano, o de último homem (der letzte Mensch).

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Agora Nietzsche, sobre o último homem:

“Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é estrela? — Assim pergunta o último homem, e pisca os olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível (…); o último homem é o que mais tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ — dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois a gente precisa de calor. (…). Adoecer e desconfiar, consideram-no perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, produz sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Evitamos, porém, que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas (…). Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira, segue voluntariamente para o hospício (…). A gente ainda discute, mas logo se reconcilia, senão se estropia o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas prezamos a saúde. ‘Nós inventamos a felicidade’, dizem os últimos homens e piscam o olho”

A descrição acima poderia servir para Krypton antes de seu fim. Na maioria das versões (nos filmes clássicos de Richard Donner e recentemente em Man of Steel, por exemplo) a imagem que temos de Krypton não é propriamente um mundo decadente, mas estagnado. Os kryptonianos julgam terem chegado a um estado tal de avanço que não é mais desejável ir além, eles julgam-se no ápice, eles “inventaram a felicidade”. Nesse ponto é Zod quem se rebela contra a estagnação nos filmes. Mas Jor-El pressente o fim de Krypton e decide mandar seu filho para a Terra, para que escape à estagnação de Krypton.

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Chegando ao planeta Terra, o Superman é criado dentro de valores humanos, demasiado humanos. Ele luta pela Verdade, Justiça e o Estilo de Vida norte-americano e ele é o máximo representante desses valores, a própria encarnação deles, valores a serem perseguidos pelos homens. Ele é visto como um Deus e seus atos inspiram a humanidade. Inspiram de fato? Pensemos por um segundo: se um ser como o Superman existisse, como nos sentiríamos? Inspirados ou desnecessários? A mais plausível seria a segunda opção, que em muitas versões de Lex Luthor (sendo uma das mais interessantes a que vemos em Lex Luthor – Homem de Aço de Brian Azzarello) esse é o motivo de seu ódio ao Superman: ele condenou a humanidade à estagnação, tal qual Krypton.

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Diz Oswaldo Giacoia Júnior que a “felicidade, tal como a desejam os últimos homens a saber, bem estar, conforto assegurado, tranquilidade e tédio com boa consciência”. Não é essa felicidade que estava em Krypton, de alguma forma presente em Metrópolis e garantida pelo Superman? Superman não só é o último homem, como condenou Metrópolis e seus habitantes a compartilharem o mesmo destino.

No arco Last Son, escrito por Richard Donner e Geoff Johns, há uma invasão de kryptonianos à Metrópolis, que sucumbe sem a menor resistência. Nessa história, Lex Luthor diz exatamente isso: que, ao se acostumar com a figura do Superman sempre por perto para resolver todos os problemas, o povo de Metrópolis tornou-se fraco.

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Superman não é um meio, mas um fim,o fim: o ápice. Mesmo que fossemos inspirados pelo Superman, seríamos inspirados a sermos como o Superman, como um último homem. Os homens estariam fadados a ser somente mais do que são e nunca ir além.

Nietzsche ainda diz que o grande desprezo pode impulsionar a vinda do Übermensch. Desprezando o que sou, posso almejar a ser algo além. Mas infelizmente o último homem se vê como o ápice da perfeição, ele não se despreza, ele esqueceu do grande desprezo, o auto-desprezo. O grande desprezo leva ao grande sofrimento. Ainda com Nietzsche: “disciplina do sofrimento, do grande sofrimento —não sabeis que somente essa disciplina criou até agora todas a elevações do tipo homem?”

Na noite em que os pais de Bruce Wayne são mortos o garoto jura combater o crime para que aquilo não aconteça com mais ninguém. Naquela noite, Bruce Wayne sente um enorme nojo de si por ter sido incapaz de impedir a morte de seus pais. Seu treinamento é fruto dessa “disciplina do sofrimento” de que fala Nietzsche.

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Batman deu a si mesmo o dever de nunca, em hipótese alguma, falhar. Ele constantemente está se superando, está indo além do que um simples homem pode (ele deu um tiro no Darkseid, matando um deus… Batman em seu momento mais nietzschiano?!)*. E tem a plena certeza de que nunca será suficiente, pois seus pais continuarão mortos, ou seja, ele sabe que não há qualquer possibilidade de consolo metafísico (em raríssimas histórias há algum tipo de reencontro com os pais em uma outra vida ou algo do gênero), por isso sua promessa e sua missão são tão importantes, ele efetivamente cria um valor para si.

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Por tudo isso não estaria o Batman mais próximo do Übermensch que o Superman?

Para saber mais:

https://www.youtube.com/watch?v=ykJgPwFaKgY

http://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/vewFile/5002/3544

* Nota: Posteriormente descobre-se que o Batman não matou Darkseid, mas somente enfraqueceu-o com o tiro. A Mulher-Maravilha retirou-o do corpo de Dan Turpin (que ele havia possuído). No entanto, Grant Morisson havia declarado que era essa sua intenção. De acordo com ele, o ciclo do Batman começa com uma bala, que é a bala que matou seus pais, representando o Mal, e deveria terminar com uma bala, a bala disparada pelo Batman para matar o Mal, Darkseid. Enfim… problemas de continuidade. No entanto a imagem permanece forte:

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Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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10 respostas para Superman versus Batman: quem é o verdadeiro Übermensch?

  1. Nuno Amado disse:

    Bom post, e sim, Batman é o verdadeiro Übermensch!
    🙂

    Abraço
    .

  2. Tygra disse:

    Agora leia um pouco do que G. K. Chesterton escreveu sobre estes temas abrodados por Nietzsche.

    • Nerdbully disse:

      Vou ler sim, obrigado pela indicação. Conheço Chesterton só de tabela, por Borges. Mas Chesterton está morto, assim como Nietzsche. Então seria melhor nós conversamos a respeito. Quais temas especificamente vc está dizendo que Chesterton também aborda? Em que pontos eles diferem dos de Nietzsche? E como isso entraria aqui na discussão do Batman e do Superman? Abraço.

    • Nerdbully disse:

      Finalmente li Hereges e Ortodoxia. Embora reconheça que o tema do reencantamento do mundo esteja presente em Borges e em Neil Gaiman (ambos assumidamente influenciados por Chesterton) ainda acho que ele está no niilismo reativo de tentar a todo custo ressuscitar valores transcendentais. Mas ainda gostaria de saber de você quais temas especificamente vc está dizendo que Chesterton também aborda? Em que pontos eles diferem dos de Nietzsche? E como isso entraria aqui na discussão do Batman e do Superman? Abraço.

  3. Al Duarte disse:

    Seu texto é bem interessante. O complicado é que é difícil pensar essas duas personagens “em geral”, já que há uma ampla produção e variadas versões (os escritores fazem o que querem com elas); seria então preciso estabelecer uma seleção de obras, e pensar as personagens dentro delas.

    Por ex. há certas versões do Batman que podem ser bastante ressentidas, e que ele seja tomado pelo sentimento de vingança, e ressentimento e vingança é um caráter da moral dos fracos, dos reativos, coisa que o Super-Homem nietzchiano espezinha. Portanto, eu acho complicado dizer que Batman se assemelha mais a ele. Por outro lado, se selecionássemos aquelas versões em que se explora a própria ideia de homem em devir-morcego, um homem que escapa das formas de homem e se abeira de uma vida animal, algo um tanto kafkiano, seria interessante estabelecer como algo próximo ao super-homem nietzschiano. Mas o mais preocupante é a nivelação que há, afinal de tudo entre Batman e Superman, afinal, pode ser que eles lutem por coisas semelhantes, e os dois sejam no fundo heróis parecidos – o Batman precisa ser mais do que é para ser esse herói, o Superman precisa ser menos do que é, para ser esse herói, e nesse meio termo, eles encarnam a moral geral, humana demasiada humana.

    Abraços

    • Nerdbully disse:

      Até concordo que em muitas histórias Bruce Wayne aparece como ressentido… mas não é justamente ao vencer o ressentimento que ele se torna o Batman? Vamos pegar, por exemplo, no filme Batman Begins: Bruce Wayne ressentido quer matar o assassino de seus pais. É somente quando percebe a inutilidade desse ato que ele começa seu treinamento para se tornar o Batman. O Batman é um personagem com mais de 70 anos, que passou nas mãos de vários escritores, e seria um tanto absurdo cobrar coerência dentro de uma produção tão extensa, mas, no geral, as melhores histórias com o Homem-Morcego são as que revelam os aspectos do Übermensch nele e talvez esse seja o grande mérito do que o Morrison fez com o personagem. Abraços.

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