Kirby – rei dos quadrinhos

O menino pobre autodidata que revolucionou a 9ª Arte e só queria ver seu talento reconhecido.

No último dia 28 de agosto foi o centenário de nascimento de Jack Kirby (Jacob Kurtzberg), a maior referência para histórias em quadrinhos. O menino pobre que cresceu no meio da maior crise econômica do século XX (a quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929), tinha um talento nato para o desenho e era um observador atento da condição humana. A escassez e a necessidade de conseguir emprego levaram Kirby a desenvolver uma postura de sobrevivente, que se adapta e inventa soluções criativas.

Só depois de sua morte, como resultado de uma briga longa na justiça, a Marvel passou a creditar seu nome na página de abertura dos comics de personagens que ele co-criou. Mas sua obra sempre foi reconhecida por artistas e fãs como a mais influente, especialmente pela parceria com Stan Lee no nascimento da Marvel na década de 1960, além da criação dos Novos Deuses para a DC Comics. As soluções gráficas para máquinas interplanetárias, raios cósmicos, monstros e raças alienígenas, são a marca mais óbvia do artista, mas as inovações que ele desenvolveu para a linguagem vão muito além disso.

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Nessa página acima, desenhada em 1940, Kirby direciona o olhar do leitor com a composição da página. A seta entre o primeiro e o segundo quadro era um recurso bastante usado pelos editores que se preocupavam em ajudar o público a entender a narrativa. No resto da página a arte de Jack Kirby elimina a necessidade da seta. O enquadramento, a posição do corpo dos personagens e até as bordas de cada quadro, levam o leitor a seguir a narrativa e acompanhar a sequência correta dos balões de fala. O ângulo do prédio no último quadro joga o leitor para fora da página, pedindo que esta seja virada para que a história prossiga.

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The Spirit de Will Eisner e O Surfista Prateado de Jack Kirby

É interessante o contraste entre a forma de trabalhar de Kirby e de Will Eisner, outro nome fundamental na construção dessa linguagem.  Eisner definia primeiro os espaços dos quadros internos da página e já rascunhava os balões de fala para só depois trabalhar nos desenhos, porque preferia saber exatamente qual o espaço que ele teria para a arte. Já Kirby compunha a página desenhando toda a sequência de ação, sem se preocupar com os diálogos, que seriam encaixados depois, onde a arte apresentasse algum respiro. Essa forma de trabalhar aumentava a carga dramática da narrativa já que a história avançava primeiro pelas imagens, para depois ser complementada pelos textos, característica fundamental do sucesso da Marvel nos anos 1960.

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Outra faceta da genialidade e Kirby eram as ideias para roteiros. Nesse quadrinho de 1972 (acima), a edição #3 da revista Wierd Mystery da DC Comics, Kirby nos apresenta uma história onde pessoas solitárias são consumidas por uma chama azul misteriosa. Nas páginas de The Burners  não existem vilões convencionais, perseguições dramáticas, batalhas ou qualquer outro clichê. A história mostra uma série de estudos de caso – na página de abertura uma mulher de expressão bruta, em um minuto está sentada estática e em outro é apenas um amontoado de cinzas. Noutra cena uma mulher dança sozinha em público e de repente é consumida por uma combustão espontânea de chamas azuis. O narrador revela muito pouco sobre a dançarina flamejante, mas ele nos leva a crer que ela queimou por não tolerar a visão de tantos casais felizes.

A capa da revista que apresenta a história de Kirby vende para o público algo completamente diferente. A chama azul personificada em um mostro que persegue uma donzela em perigo apenas reforça todos os clichês possíveis. A desconexão entre a capa e a história de Kirby indica que os editores não acreditavam na capacidade de seus leitores de apreciar uma história sobre solidão, uma condição com a qual muitos adolescentes poderiam ter se identificado. Mas mais do que isso, mostram o quanto as inovações de Jack Kirby foram subestimadas por seus pares.

Hoje conseguimos olhar para a produção de Kirby com distanciamento suficiente para perceber o quanto ele se reinventou ao longo de sua carreira e o quanto essa busca por soluções avançou a linguagem dos quadrinhos. Já na percepção do próprio Kirby, a desvalorização e a falta de reconhecimento em relação a suas criações e ao seu trabalho marcaram boa parte da sua carreira. O menino autodidata que se fez do nada e queria apenas ser reconhecido pelo seu talento passou a vida toda consumido por essa necessidade. Mas como qualquer grande artista, ele transformou essa dor em arte e nos deixou um legado riquíssimo. Viva o rei dos quadrinhos!

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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7 respostas para Kirby – rei dos quadrinhos

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