Tom King, o roteirista mais badalado da DC Comics, está revisitando uma das mais interessantes criações de Jack Kirby – o Senhor Milagre (Scott Free) dos Novos Deuses.
O Quarto Mundo e seus habitantes, os Novos Deuses, criados por Jack Kirby para a DC Comics no início da década de 1970 é um panteão complexo e muitas vezes mal aproveitado pela editora.
A grande exceção é Darkseid, o mega vilão de sagas como Crise Final (escrita por Grant Morrison), e que retorna sempre que os roteiristas precisam de um antagonista de peso para unir seus heróis (como no primeiro arco da Liga da Justiça dos Novos 52).
Ainda podemos citar Orion (filho de Darkseid), que teve papel importante nas histórias da Mulher-Maravilha (Novos 52) escritas por Brian Azarello, o Senhor Milagre (filho do Pai Celestial) e a Grande Barda que foram membros da Liga da Justiça Internacional (na clássica fase escrita por Keith Giffen e J. M. deMatteis nos anos 1980)
Tom King optou por uma abordagem psicológica / filosófica do personagem e de seu criador. Jack Kirby escreveu o Quarto Mundo quando se sentia rejeitado e desvalorizado pela Marvel (quando saiu da editora brigado com Stan Lee nos anos 70). Um exemplo disso são personagens (coadjuvantes das histórias do Senhor Milagre escritas por Kirby) como Funky Flashman e seu assistente Houseroy, caricaturas de Stan Lee e Roy Thomas. Tom King inclui Flashman em seu roteiro, mas vai além do óbvio.
No Quarto Mundo de Kirby os dois soberanos dos reinos de Apokopolis (Darkseid) e Nova Genesis (Pai Celestial), em nome de uma possível trégua, trocam entre si seus filhos. Orion é criado pelo Pai Celestial e Scott Free (o Senhor Milagre) é criado por Darkseid. É lá que Scott conhece a Grande Barda e os dois fogem para a Terra, onde ele assume a identidade de Senhor Milagre, um mágico no estilo de Houdini.
A partir disso Tom King aborda o personagem sob dois pontos de vista – como um messias que é enviado pelo Pai Celestial para um mundo inferior e como uma criança que foi rejeitada pelo pai e cresceu em um ambiente de violência física e psicológica.
Mais do que isso, King coloca Kirby na narrativa, na pele de Oberon, o assistente / empresário do Senhor Milagre. O sobrenome de Oberon é Kurtzman (o mesmo de Kirby), e em um dos momentos mais densos da narrativa ele mostra o Senhor Milagre visitando as marcas e a assinatura de Jack Kirby na calçada da fama em Hollywood (embora essa homenagem não exista no mundo real). Na calçada é possível ler a inscrição – Comics will break your heart (Os quadrinhos vão partir seu coração).
Entre as mágoas, as desilusões e os corações partidos de Kirby e de Scott Free, Tom King vai desenhando o derradeiro escape do Senhor Milagre. Sempre flertando com a morte, seja por falta de sentido para sua vida ou por força do destino, o herói vai nos mostrando toda sua fragilidade e suas mais profundas dúvidas. Em duas páginas magníficas na quinta edição, King coloca na boca do personagem a defesa do conceito de Deus de René Descartes conhecido como argumento ontológico.
Para o filósofo francês conhecido pelo seu “Penso, logo existo”, a existência de Deus (e aqui os personagens estão discutindo sobre a existência deles próprios já que são Novos Deuses), está provada pela nossa capacidade de pensar no conceito de Deus. Se podemos pensar sobre o conceito de Deus, isso significa que ele existe (não importa se como criação nossa ou se ele pré-existe à nossa existência). Assim como o Jack Kirby que nós leitores conhecemos existe em seus personagens, que são criações dele.
Em uma entrevista sobre a série para o site Nerdist, King disse: “no mundo de hoje, parece que não temos pra onde fugir. E as regras que um dia fizeram sentido, não fazem mais, e a impressão é que estamos todos juntos nessa e que não tem saída, não tem como escapar. E que melhor forma de escrever sobre essa sensação do que com o Deus das Fugas Impossíveis?”
A série em 12 edições ainda esta sendo publicada nos EUA. Deve chegar por aqui no fim do ano, mas vale muito! Além do texto de King, a arte de Mitch Gerads, que já trabalhou com King em O Xerife da Babilônia, é riquíssima. Os efeitos digitais são muito bem aplicados e a mistura deles com as tradicionais retículas são uma bela homenagem à arte icônica de Jack Kirby.
Imperdível!
Engraçado, só agora que você falou foi que eu fiz uma breve pesquisa e vi que o subtítulo das Meditações de Descartes é “em que a existência de Deus e a imortalidade da alma são demonstradas”.
Quanto ao Senhor Milagre, não me lembro de ter lido nenhuma história com ele (ainda estou me refamiliarizando com o universo DC). Qual seria o melhor ponto de partida?
Oi Henrí! Acho que o melhor é ler o Quarto Mundo do Kirby. Os Novos Deuses e mesmo o título próprio do Senhor Milagre, todos escritos e desenhados pelo Kirby, são o que de melhor foi feito com o personagem. Todo o material do Kirby tem uma superfície simples, mas com muitas camadas de significado, por isso é tão rico. A fase do personagem na Liga é interessante, mas vai mais pro humor. A Crise Final do Morrison é sem dúvida a primeira boa tentativa de extrair mais desse universo complexo do Kirby. Essa minisérie do Tom King será provavelmente um marco para o personagem. Abs!
Muito obrigado pelas referências! Vou ter os trabalhos com o Jack Kirby em mente daqui por diante.
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Texto excelente! O Senhor Milagre de King e Gerads é um clássico instantâneo. Só uma correção mínima da mínima: o primeiro nome do desenhista é Mitch, Tom é o King. Grande abraço!
Grande Lucas! Texto corrigido. Valeu!
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Nunca gostei muito das historias dele, na fase da liga era muito engraçado realmente.
A fase dele na liga da justiça foi otima, mas nunca gostei muito das historias solo dele.
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O texto é antigo, hoje a revista já foi lançada no Brasil, e realmente é clássico instantâneo, a arte é incrível e o enredo de Tom King tem um ritmo e riqueza capazes de fazer com que você não queira parar de ler………….