Estamos vivendo uma “Era da Diversidade” nos quadrinhos?
É o que parece sugerir nosso Red Shirt de hoje. Sem mais, com vocês, o historiador Rodrigo Farias.
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Em setembro de 2015, a Marvel anunciou Ta-Nehisi Coates (pronuncia-se Tanerrássi Coutes) como o roteirista da futura série do Pantera Negra. Se você não está ligando o nome à pessoa, não se preocupe: Coates nunca escreveu quadrinhos antes — aliás, nem ficção. Ele é jornalista e blogueiro da revista The Atlantic, e é muito provável que a grande maioria dos leitores brasileiros nunca tenha ouvido falar dele. Nem do prêmio que ele ganhou por seu livro Entre o mundo e eu, vencedor do National Book Award de 2015 na categoria de não-ficção e recém-lançado no Brasil. Ou de sua campanha por reparações históricas para o afro-americanos, que tem dado o que falar e já foi mencionada na fase preliminar da atual corrida presidencial desse país. Ou que ele vem sendo considerado o mais importante comentarista sobre as questões raciais nos EUA de hoje em dia. Pois bem: esse é o homem que a Marvel convidou para escrever o novo arco do seu primeiro super-herói negro.
Começando em abril de 2016, a “temporada” escrita por Coates terá pelo menos 12 edições, ou seja, um ano. O lançamento não é acaso, pois em maio o Pantera terá sua primeira aparição cinematográfica em “Capitão América: Guerra Civil”, um prólogo para seu próprio longa, previsto para 2018. Se essa é uma estratégia comercial planejada com bastante antecedência — o calendário de filmes, pelo menos, foi anunciado em 2014 —, o contexto não poderia ser mais adequado: nesta década, e particularmente de 2013 para cá, discussões sobre o racismo voltaram a chamar atenção nos EUA, especialmente a partir de protestos contra a violência policial contra cidadãos negros, que deram origem a movimentos como o Black Lives Matter. Com a recente ascensão de Donald Trump como pré-candidato à presidência pelo Partido Republicano, que prometeu deportar os cerca de 12 milhões de imigrantes latinos ilegais que viveriam em território americano, e o aumento do temor em relação a imigrantes e refugiados de países muçulmanos, a sociedade americana mais uma vez se vê obrigada a discutir o quão a sério leva seus ideais de liberdade e justiça para todos.
Isso quer dizer que os quadrinhos do Pantera Negra farão comentários sobre atualidades? Bem, se fosse o caso, não seria a primeira vez. Nos anos 1960, quando a maioria dos principais personagens da Marvel foram criados, um dos diferenciais da editora era justamente a coragem de tratar de temas sérios da vida real: X-Men (1963) é basicamente um comentário sobre o preconceito racial; O Incrível Hulk também trata de desajuste social, para não falar do perigo nuclear, e o Homem-Aranha, que se alternava entre supervilões e bandidos de rua, tinha problemas de relacionamento e materiais comuns a muitos jovens. Aliás, ficou famoso o arco do Aracnídeo em que os editores enfrentaram o moralista Comics Code para falar do problemas das drogas em 1971. Isso para citar apenas três exemplos.
Na DC, o “ponto de virada” quanto à abordagem de problemas reais se deu a partir de 1970, com o crossover entre o Arqueiro Verde e o Lanterna Verde feito por Neal Adams e Dennis O’Neil — anos depois de a Marvel ter lançado a tendência. Mas ambas as editoras apenas expressavam a efervescência de sua época: na década de 1960 e início de 70, o movimento dos direitos civis, a revolução sexual, a contracultura, o surgimento da chamada “Nova Esquerda”, os protestos contra a Guerra do Vietnã, a ascensão da retórica revolucionária na onda da revolução Cubana e dos movimentos anticoloniais — para citar só alguns elementos mais visíveis na perspectiva norte-americana — tornaram-se parte das notícias cotidianas para milhões de pessoas. O mundo, e os EUA em particular, se transformava rapidamente entre turbulências políticas e convulsões socioculturais.
Tamanha agitação social acabou se infiltrando nos quadrinhos de super-heróis, influenciando os roteiros de personagens icônicos como o Capitão América e estimulando a criação de outros de caráter “étnico”. O próprio Pantera Negra, criado por Jack Kirby e Stan Lee em 1966, talvez não por acaso na mesma época do início do movimento Black Panther, reflete um desses aspectos: monarca de uma nação africana superavançada, dotado de habilidades físicas extraordinárias e também de um intelecto genial, ele parecia o ideal de uma África que marchava rapidamente para a independência e a afirmação de sua dignidade no cenário internacional.
Curiosamente, somente mais tarde é que a Marvel criou heróis negros americanos, como o Falcão, em 1969, e Luke Cage/Powerman, em 1972. Essa época ficou conhecida como Era de Bronze, clique aqui para saber mais.

As estreias do Falcão (1969) e de Luke Cage (1972), os
primeiros heróis negros e americanos da Marvel.
Se essa relação entre crítica social e quadrinhos já é antiga, nesta segunda década do século XXI ela sofreu um impulso talvez só comparável ao dos anos 60, senão maior. É nítido que a política das duas grandes editoras, e da Marvel em particular, tem procurado refletir a diversidade étnica e cultural do seu público, que já não se limita a crianças e adolescentes, mas inclui um bom número de adultos. Para citar alguns exemplos recentes, em pouco tempo fomos contemplados com heróis de ascendência libanesa (o Lanterna Verde Simon Baz), paquistanesa (Ms. Marvel) e latina (Vibro, que teve série própria na DC e é coadjuvante na série televisiva The Flash), além de vários com orientação homossexual (a Batwoman Kate Kane; a dupla Midnighter e Apollo; a Miss América, America Chavez; além dos já clássico Estrela Polar, que chegou a casar).

Cena de All-New X-Men #40 (abril de 2015): a telepata indiscreta Jean Grey revela a seu colega Bobby Drake, o Homem de Gelo, que sabe que ele é gay. A história causou controvérsia entre os fãs.

Capa de Astonishing X-Men #51 (2012), com o Estrela Polar (à dir.) e seu noivo:
o primeiro casamento gay do Universo Marvel.
Isso para não falar em “releituras” de personagens clássicos: na linha Ultimate, da Marvel, o negro de ascendência porto-riquenha Miles Morales se tornou o sucessor de Peter Parker como Homem-Aranha, e o sucesso foi tanto que o personagem foi incorporado ao universo principal; entre os X-Men, o Homem de Gelo, que nunca teve sua sexualidade questionada em décadas de publicação, foi “tirado do armário” por Jean Grey; nos “Novos 52” da DC, a nova versão do Lanterna Verde da Terra 2, Allan Scott, também é homossexual, e Bunker, dos Novos Titãs, além de gay, é mexicano.
Como cereja do bolo, em novembro de 2015 a Marvel juntou vários dos seus personagens representantes de minorias em All-New All-Different Avengers.
Mas não são apenas as minorias que têm sido discutidas. Em 2015, a imprensa deu uma considerável atenção à revelação de que o “novíssimo” Capitão América, Sam Wilson (ex-Falcão), entrou no ultrapolarizado debate político americano ao se declarar um liberal (um reformista de centro-esquerda, no linguajar americano). Que isso tenha causado surpresa inclusive em comentaristas americanos é no mínimo estranho: negro e nascido no Harlem, em Nova York, Wilson apenas reflete uma tendência política histórica dos afro-americanos. E não por acaso, na mesma edição em que assume publicamente suas preferências políticas, Wilson enfrenta vigilantes que atacam pessoas que tentam cruzar ilegalmente a fronteira entre o México e os EUA — um dos grandes pomos da discórdia entre esquerda e direita na sociedade americana de hoje. O caso chegou a merecer uma matéria crítica na FOX News, onde os comentaristas disseram que a revista apresenta os conservadores americanos como os vilões. Seria o novo Capitão América antiamericano???

“Eu tenho um lado”: Em Captain America: Sam Wilson #1, o antigo Falcão e agora novo Capitão América revela suas posições políticas em uma coletiva de imprensa. No texto, referências ao abuso de poder por parte das agências governamentais de segurança (a N.S.A., real, e a SHIELD, fictícia) e à atual polarização político-ideológica dos EUA.
Cabe lembrar que, nos EUA, onde as igrejas fundamentalistas ainda são influentes entre os conservadores e a questão dos direitos de minorias ainda são muito associadas à esquerda socialista e aos liberals do Partido Democrata, a mera existência desses personagens, alguns com revistas próprias, já pode ser interpretada como uma opção política, para não dizer um apoio a mais em momentos decisivos — como no julgamento da constitucionalidade do casamento gay, por exemplo, em 2015, que se tornou o grande marco dos direitos civis americanos neste século. Entretanto, o caso do Capitão América/Sam Wilson levanta uma questão ainda maior: estaria a Marvel, assim como a DC fez com Arqueiro Verde nos anos 60 e 70, se permitindo um alinhamento ideológico mais amplo e explícito com seus personagens? E caso esteja, isso valeria para outros matizes do espectro político? Poderia haver, por exemplo, um herói com série própria explicitamente comprometido com as ideias da direita nativista à la Trump e o Tea Party ou dos neoconservadores? Em uma época em que até o legado da Revolução Francesa, fonte da política moderna, tem informado os roteiristas — logo em Asgard, onde a milenar monarquia absoluta de Odin tem sido questionada com argumentos democráticos na série da nova Thor —, tudo parece possível…

Em Thor #1, Odin, mostra todo o seu progressismo exigindo o poder absoluto de volta depois que sua esposa, Freyja, assumiu seu temporariamente lugar e começou a implantar barbaridades como dividir o poder com o povo e submeter decisões governamentais a um “Congresso de Mundos”. Nem o próprio Loki se atrevera a tanto.
Em meio a essa avalanche progressista, o que há de espantar no caso do Pantera Negra de Ta-Nehisi Coates? Bem, existe ao menos uma novidade no caso: não se trata de um roteirista profissional “importando” temas da realidade para os quadrinhos de super-heróis, mas de um crítico social e ativista sendo “importado” para o cargo de roteirista. Guardadas as devidas proporções, já que falamos dos anos 60, imagine-se como seria se Stan Lee convidasse Martin Luther King ou Malcolm X para escrever um ano inteiro de X-Men, ou o novo-esquerdista Tom Hayden para escrever as origens do Homem de Ferro no Vietnã. Isso não significa, naturalmente, que as histórias de T’Challa vão se tornar um mero panfleto. Em seu blog, o próprio Coates esclarece:
O racismo não é apenas moralmente errado, também resulta em histórias ruins.
Assim como o didatismo. T’Challa não vai gritar, “Mãos ao alto! Não atirem!” Não haverá papers políticos sobre o tráfico de escravos, nem um estilo narrativo de “Mês da História Negra”, superzeloso e com tons de sépia. A cultura e a política não podem estar no topo; elas têm de estar embutidas. Então, sim, você poderá ver um pouco [do ativista e historiador da Guiana] Walter Rodney na biblioteca real, ou uma passagem [do poeta afro-americano] Robert Hayden. Ou você poderá ter uma capa alternativa que se inspira em nosso momento presente. Mas não há necessidade de exagerar. O fato é este: T’Challa é negro. Isto não é uma declaração. É uma oportunidade.
Coates tem razão. Em 50 anos de vida, o Pantera Negra nunca chegou a ser muito popular entre os leitores. Por décadas, apesar de algumas poucas e breves séries próprias, ele foi mais lembrado como um membro do “segundo time” dos Vingadores, ao lado de personagens como Hércules e Magnum. Em 2005, sua revista foi “ressuscitada” e chegou a durar 41 edições, nas quais ele chegou a até mesmo casar com a Tempestade, dos X-Men. Mais recentemente, ele teve um papel crucial nas novas Guerras Secretas, de Jonathan Hickman, e se afirmou como um dos mais importantes líderes dentre os heróis da Marvel. O herói que Coates herdou em 2015 está longe de ser um simples figurante. Estarão as novas histórias à altura do novo status de T’Challa? Isso é o que nós, os leitores, vamos dizer.
Rodrigo Farias, autor de A Nova Esquerda Americana (2009), é historiador, professor e fã inveterado do Lanterna Azul e do Adão Negro (por mais contraditório que isso seja).
Finalmente a discussão da diversidade tem dados frutos culturalmente! Mas é necessário que isso chegue à política, onde o conservadorismo ainda impera.
no caso do Odin dizendo aquilo pra Freiya eu li como se os fãs(que detestaram o fato do Odin se auto exilar por tanto tempo) estivessem dizendo isso pra ela, acho que foi fan service kkkkkk
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