Sartre, X-Men, Evangelion e Star Trek.
Se você não tomar cuidado, a força do hábito e a rotina do cotidiano sequestram nossa atenção. Parece que já se viu tudo e qualquer obra nova parece uma repetição de algo que já se conhece. Mas quando certos temas, certos “acordes” narrativos são tocados de uma forma diferente, algo desperta e eles te obrigam a repensar tudo o que sabia. Como indicamos aqui, é o caso da série Powers of X/House of X, de Jonathan Hickman.
Atenção! Se você não leu a série Powers of X/House of X, este post traz spoliers!
A edição n.2 de Powers of X, lançada em 14 de agosto de 2019, mostra o prelúdio de um ataque dos mutantes contra as forças humano/sentinelas em dois recortes temporais distintos: no “ano 1”, o presente, quando Ciclope e os X-Men estão sendo liderados por Xavier e Magneto.
O “ano 100”, quando Wolverine, Rasputin e Cardinal (quimeras genéticas de diversos mutantes, como Colossus e Nortuno) são liderados por Apocalipse.
E um terceiro recorte temporal, no “ano mil”, mostra a entidade-simbiose humano/sentinela buscando o que espera ser o próximo passo evolutivo: a conversão da humanidade numa falange.
Marca de Hickman, um “glossário” explicativo revela a arquitetura desse conceito.
A Falange é uma sociedade interestelar que opera em nível galáctico e representa um intelecto que tem total controle de uma galáxia hospedeira.
Neste nível de sociedade, um intelecto existe apenas para expandir sua própria inteligência, consumindo sociedades menores, e para tomar controle das energias necessárias para expandir tais necessidades.
Se uma falange encontra uma sociedade digna de ser consumida por suas necessidades de inteligência, então uma Ascensão ocorre. Se uma Falange encontra uma sociedade que não é digna de assimilação à coletividade, então ela irá disseminar ali um vírus ‘tecno-orgânico’. Logo este vírus irá produzir uma Espiral de Babel que convocará um Tecnarca para remover/repropor aquele lixo societário do universo.
[NOTA: Tecnarcas não sabem que eles foram produzidos para servir à causa da Falange.]
Na escala Kardashev, uma Falange representa uma civilização de Nível III.
Assim, na história narrada por Hickman, não só os humanos abriram mão da humanidade convertendo-se em amálgamas orgânicos e tecnológicos, mas também querem abdicar de sua própria individualidade. Buscam uma “ascensão” galáctica por meio da integração à Falange, rival antigo dos X-Men que deram as caras nas edições do final da década de 90. Pelo que sugere a história, caberá aos mutantes, última instância da “alma” humana, resistir a este plano sinistro e preservar a individualidade na Terra.
A ideia de que o destino da humanidade é tornar-se uma consciência coletiva não é nova. Ao longo décadas, obras célebres tocaram o mesmo ponto, com graus e formas diferentes de abordagem.
Lá pela década de 1930, desde que os romances de ficção deixaram de se ambientar no presente e lançaram o cenário das histórias lá pros confins do futuro, duas tendências narrativas se fortaleceram. De um lado, o polo da evolução social, associada e simbolizada por meio do progresso tecnológico. Obras como a A Fundação, de Isaac Asimov (1942), ou 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke (1968), são exemplos da tendência, digamos, “otimista”.
De outro lado emergiu na ficção o polo do retrocesso social, marcado por uma degradação da técnica, da limitação crítica dos recursos materiais necessários para a sobrevivência da humanidade. Obras como 1984, de George Orwell (1949) e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), são exemplos dessa tendência “pessimista”.
Em comum, ambas indicam um ponto de fuga: a tração das narrativas é a libertação do indivíduo de um destino funesto, opressor da individualidade. O final “feliz” é a liberdade e individualidade do ser, mesmo que ela leve ao desespero e à solidão. Te faz lembrar de alguma coisa?
Neon Genesis Evangelion, criação máxima de Hideaki Anno, foi ao ar pela primeira vez em 1995 e, além de um exemplar formidável de mecha anime, com batalhas emocionantes entre robôs gigantes e monstros alienígenas, transborda indagações filosóficas e existenciais.
Se você viu e se esforçou pra entender o final desse anime, reconheceu que uma das situações mais perversas era o tal “Projeto da Instrumentabilidade Humana”. Agenciado por Gendo Ikari, o plano era transformar toda a humanidade num grande sopão laranja, um caldo de consciência coletiva, sem limites entre os sujeitos. De seu lado, Gendo ansiava reunir-se (quiçá, submeter) o objeto de seu desejo, Yui Ikari, nem que isso significasse brutalizar a vida do próprio filho, Shinji. Mas o sucesso do Projeto significava também que a humanidade deixaria de existir como tal, “evoluindo” para algo alternativo. Ela se tornaria uma entidade amorfa, tangencialmente consciente de si, apta a se opor aos “anjos”, seres cósmicos criados para aniquilar os “filhos de Lilith”, a própria humanidade.
Algumas das questões levantadas em Evangelion, como o que caracteriza a humanidade, a importância da civilização, o sentido da evolução, e o medo do desconhecido também foram exploradas por outra obra, especial ocupante no coração de todo nerd: Star Trek.
Em Q Who, episódio de Star Trek – a Nova Geração que foi ao ar em maio de 1989, os fãs foram apresentados aos Borg, raça nativa do então longínquo Quadrante Delta da galáxia.
Conforme relatado por Q e Guinan, os Borg eram uma espécie enxame, dotados de uma mente coletiva, uma colmeia de predadores espaciais, responsáveis por massacrar planetas inteiros,. Não demorou muito, os Borg passaram a representar o pior de todos os males no universo de Star Trek, um inimigo tão devastador quanto inexorável. Prova disso foi um dos maiores cliffhangers já criados numa série de televisão, a assimilação do capitão Jean-Luc Picard pela coletividade Borg em The Best of Both Worlds (S.3, E26), de junho 1990.
Ao que se reconhece, o tema tratado por Jonathan Hickman em Powers of X/House of X, a transformação da humanidade em uma consciência coletiva, a perda/abdicação da individualidade, seja como foco de antagonismo dos personagens ou objeto simbólico de atração, tem sido recorrente. Mas como é possível explicar a reincidência deste tema nas narrativas da ficção ao longo das últimas décadas e, pelo jeito, não exclusivamente americanas?
Uma explicação possível (e que não exclui outras), é rasteira. Para fins anedóticos, indispensável. O medo da supressão do “sujeito”, da abolição de limites entre um e outro, numa sociedade sustentada pelo individualismo associado a forças de mercado, emergiu naturalmente nos Estados Unidos.
Não por acaso este medo é a origem o “medo vermelho”, o temor endêmico do comunismo que assolou a vida americana nos anos 50 levou ao McCartismo, à “caça às bruxas”, o que transformou Charles Chaplin num suspeito de “atividades anti-americanas”, o que levou à publicação de Sedução do Inocente, infame obra de Frederick Wertham que “denunciava” os quadrinhos como indutores de “delinquência infanto-juvenil”. Razoável pensar, se o comunismo representava abrir mão dos direitos individuais em nome de um ente coletivo forte, cabia ao “bom” americano – ou ocidental – proteger ostensivamente as muralhas do ser.
Uma abordagem mais ponderada, porém, ajuda a esclarecer a permanência do tema da falange da consciência coletiva. O assunto foi objeto das reflexões de Jean Paul Sartre, notáveis especialmente em O Ser e o Nada, obra de 1943, em que o filósofo examina como a identidade se constitui nas relações diferenciais dos indivíduos. Em outras palavras, as experiências que um indivíduo (eu, você, qualquer um) vivencia, as pessoas que encontra, convive ou deixa de conviver, constituem os referenciais para construção das identidades. Estas interações provocam escolhas e emoções derivadas, um mosaico de experiências que definem a essência dos indivíduos, eles mesmos responsáveis por suas livres escolhas.
Como sabe qualquer um que se deu ao trabalho de pensar no assunto, não há outro responsável pelas escolhas do que o próprio indivíduo (eu, você, qualquer um), e isso é assustador. Abrir mão da liberdade em nome de um fim “teleológico”, ou seja, uma trilha de passos, formas de pensamento e condutas já “consagradas” certamente oferece um conforto emocional, a ideia de que basta fazer parte de um todo, parte de um grupo, uma coletividade, para se tornar mais contente, mais feliz.
Dependendo das circunstâncias, talvez até seja verdade. Mas o desafio que a ficção faz, especialmente a boa ficção científica, é aquele que Hickman tem trazido nas páginas de X-Men. Fazer as perguntas certas, aquelas que cada um tem que fazer a si mesmo.
Afinal, o que define mais um indivíduo, as escolhas que faz ou aquelas que deixa de fazer?
PS- O post é resultado de um engarrafamento paulistano infernal. Fossem Nerdbully e Velho Quadrinheiro músicos, teria saído um jazz excepcional. Ex Libris Quadrinheiros.
Fenomenal! Que maravilha de texto!
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