Como a Marvel não enxergou o potencial de Samuel Chung.
No final de 2015 a Marvel apresentou ao mundo o sidekick do Homem Sem Medo. O personagem é Samuel Chung ou Ponto Cego, criado por Charles Soule e Ron Garney, um jovem imigrante ilegal chinês que constrói seu próprio traje de invisibilidade para combater o crime na região de Chinatown. Ele procura um mentor e acaba encontrando o Demolidor,que se identifica com o rapaz, e decide guiá-lo na vida de herói urbano.
O contexto editorial da criação do personagem é o início da Totalmente Nova e Totalmente Diferente Marvel. Momento em que a editora decidiu substituir as versões convencionais dos seus super-heróis por versões alternativas, visando incluir minorias para o papel principal de nomes como Thor (cuja identidade foi assumida por Jane Foster), Homem de Ferro (que tornou-se a afrodescendente Riri Williams, a Coração de Ferro), Hulk (cuja identidade foi assumida pelo descendente de coreanos Amadeus Cho). No caso do Demolidor, a saída foi Samuel Chung.
O fato do personagem ser um imigrante ilegal leva a história para caminhos interessantes. Inicialmente propõe a discussão da imigração para os EUA e a proteção de um povo que não tem direitos legais naquele território (o próprio poder de Samuel pode ser encarado como uma metáfora para os imigrantes que precisam viver escondidos). Outro ponto é o conflito interno do mentor de Samuel Chung, Matt Murdock, formado em Direito, brilhante advogado e no momento Promotor de Justiça.
Nessa fase há ótimos momentos e arcos estabelecendo um o vilão conhecido como Muso ou Vincent Van Gore. O vilão procura criar obras de arte com partes de corpos humanos, utilizando principalmente sangue como tinta. A história com o vilão torna-se pessoal a partir do momento em que ele sequestra e mata algumas pessoas de Chinatown, inclusive pessoas que Ponto Cego já teve contato no passado. Estabelecendo assim uma boa construção emocional e um universo de motivações próprias do novo herói.
Porém a boa fase não durou muito. A editora em determinado momento afastou o Ponto Cego das histórias com uma das atitudes mais clichês possíveis para um sidekick do Demolidor: o vilão, Muso arrancou os olhos do garoto, tornando-o cego e garantindo mais um fardo de culpa ao Homem Sem Medo.
Logo depois a Marvel seguiu com outra saída pouco criativa para o Ponto Cego: o personagem foi enviado para a China e fez um pacto com um demônio do Tentáculo (organização ninja inimiga do Demolidor) que devolveria seus olhos em troca da alma do Demolidor. O personagem reestabelece a visão e tenta entregar Matt Murdock ao demônio em um arco pouco inspirado.
Infelizmente de um momento ao outro, tudo que definia o Ponto Cego foi esquecido e sua originalidade desprezada em uma história genérica de pactos demoníacos.
Existem alguns possíveis motivos do porquê a Marvel pode ter feito isso com o Ponto Cego. Durante a publicação dessa linha de quadrinhos voltados para inclusão de minorias houve uma chuva de reclamações e quedas nas vendas, em paralelo a isso a concorrência aumentou exponencialmente a fase Rebirth da DC – que apresentava os super-heróis em suas versões mais tradicionais possíveis. Tanto que poucas edições após essa “aposentadoria” do Ponto Cego, tivemos o início do Marvel Legado que veio com a proposta de retomar as origens da editora.
Outro ponto que incentivou mudanças no quadrinho do Demolidor foi provavelmente o cancelamento das séries Marvel/Netflix, pois um personagem de mesmo nome do Ponto Cego foi apresentado durante a série do Punho de Ferro. Com o cancelamento da série parecia não existir mais motivos para manter o foco em um novo personagem que demandaria mais alguns anos de construção para, talvez, tornar-se uma marca forte no mercado de super-heróis.
A editora desperdiçou a oportunidade de ter uma boa construção para um personagem que reflete questões contemporâneas. A esperança é que algum roteirista no futuro resgate o personagem, sua essência e a pequena mitologia, para que o universo do Demolidor seja expandido para dilemas atuais e crie um novo herói com força suficiente para deixar o Demônio em Hell’s Kitchen.
Obrigado por esse artigo. Fico muito triste por estar testemunhando tantos retrocessos sociais e culturais, inclusive nas histórias em quadrinhos.