Por trás dessa simples pergunta encontra-se uma profunda reflexão sobre o agir no mundo.
Qual fã de super-herói já não se fez essa pergunta em uma determinada situação? Ou melhor, qual ser humano, diante de algum dilema ou dúvida, já não se perguntou o que outra pessoa faria em seu lugar?
E geralmente essa outra pessoa é uma referência para o portador da pergunta. Seus pais. Um professor. Um amigo. Uma figura religiosa. Um personagem. No nosso caso, um super-herói.
Mas por trás dessa pergunta existe toda uma tradição filosófica sobre ética chamada genericamente de Ética da Virtude. Quando a fazemos e escolhemos alguém como referência para nossas ações, estamos reconhecendo nesse alguém qualidades, ou, num termo mais apropriado, virtudes.
Uma virtude é “um traço de caráter manifestado no agir habitual” para Aristóteles. Ou seja, alguém que possui a virtude da honestidade não é honesto apenas ocasionalmente ou quando convém, mas constantemente.
Portanto, quando diante de uma situação nos perguntamos “O que o Superman faria?” estamos reconhecendo nele uma virtude. Mais que isso. Estamos reconhecendo ele como um ser virtuoso, que vai servir de parâmetro para nossas ações.
Mas mesmo essa simples pergunta complica-se quando pensamos nas referências de cada um. Um budista perguntaria o que Buda faria em uma determinada situação. Um cristão, o que Jesus faria e assim por diante. Mas mesmo aqui as coisas também vão se complicando.
De qual Jesus estamos falando? Daquele que diz “Eu não julgo ninguém” (João, 8:16) mostrando uma complacência infinita ou aquele que se revolta contra os vendilhões do templo (João, 2: 14-16)?
Do mesmo modo, qual super-herói serve de referência? Ou melhor, qual deve servir de referência?
Diante de uma situação muito comum nos quadrinhos, como por exemplo um assalto. Como cada super-herói reagiria?
O Justiceiro com seu código de conduta implacável que encarna a frase bandido bom é bandido morto? Como reagiria Batman, que ainda mantém a restrição de não tirar a vida dos criminosos, ainda que qualquer coisa menos que isso pareça ser justificável aos seus olhos? O Superman que impediria o assalto tentando não ferir o criminoso?
A escolha da referência ao nosso dilema ou questionamento revela quais virtudes desejamos ter para enfrentar aquela determinada situação. Ela indica que já intuímos de alguma forma a resposta que julgamos correta, pois reconhecemos na referência a virtude necessária para dar uma resposta virtuosa para o problema.

O Cavaleiro, símbolo de virtude na Idade Média ressignificado pela indústria dos quadrinhos de super-heróis
Claro que deve haver um consenso sobre quais virtudes devem ser almejadas e a Ética da Virtude também se preocupa com isso, tentando estabelecer virtudes universais que devem ser almejadas por todos, como a honestidade, a justiça etc.
Mas sabemos que historicamente não há virtude universal. Do mesmo modo que Aquiles é exemplo de virtude na Ilíada com sua hybris guerreira implacável, com o advento da democracia em Atenas e a ascensão dos hoplitas, o cidadão-soldado, virtuoso é aquele que mantém a disciplina para manter a formação no combate, e não aquele que quebra as fileiras para destacar-se individualmente, como o filho de Peleu faria. A escolha do ser virtuoso revela muito sobre o caráter de uma pessoa, mas também revela algo sobre a sociedade em que vive.
A cena abaixo foi compartilhada à exaustão nas redes sociais e é indicativa de uma certa mentalidade que vem ganhando cada vez mais expressividade nos últimos anos. O Superman, um herói solar, certamente não concordaria com uma palavra. Mas se te fizesse as perguntas abaixo, o que você responderia?
O Justiceiro está correto?
Quem é mais virtuoso, o Superman ou o Justiceiro?
Talvez suas respostas tenham sido ambíguas. Você talvez ache que o Justiceiro está correto, mesmo sabendo que o Superman é mais virtuoso. Isso demonstra a complexidade das coisas envolvidas na resposta das questões e nas relações entre elas, mas também demonstra o quão importante são as reflexões aprofundadas sobre quais virtudes devem ser almejadas.
No fim das contas, a pergunta sobre o que um ser virtuoso faria em determinada situação não leva a uma resposta imediata, pronta e acabada, simples e prática, mas abre caminho para uma longa reflexão a respeito de como portar-se no mundo.
Espero que esse texto possa te ajudar em seu próximo dilema, leitor hipotético.
Efusivas palmas para seu texto e para as reflexões que ele provoca.
Obrigado, caro Lair. Abraço.
Excelente texto. Tudo depende do contexto, acredito eu. O que o Superman faria se sua mulher e filho fossem brutal e sadicamente assassinados diante de seus olhos? Ele prenderia, sentenciaria, condenaria e executaria os assassinos? Mas, e as instituições? As leis? Os bons costumes?
Diante da incredulidade face às instituições e com sangue nos zóios, a velha máxima do olho por olho e dente por dente de Hamurabi , autor do mais antigo código de leis sempre gritará mais alto. Bateu, levou. E caso Gandhi (apesar de bem intencionado) tivesse visão de calor, provavelmente não teria dito que “olho por olho e o mundo acabará cego”.
O ponto do texto é exatamente o contrário. Uma das características do ser virtuoso é a constância de suas ações. Um ser virtuoso não o seria se seus atos dependem das circunstâncias.
Estamos falando do Superman, não?
Pelo que sei ele já matou, sim. O general Zod, Quex-Ul e Zaora, seus conterrâneos. O Coringa e tals.
Sim, há algumas versões em que o Superman mata, sempre com alguma justificativa melhor do que o senso comum do “E se fosse a sua mãe/filho/filha?” etc. No Injustice ele de fato mata o Coringa, mas mesmo assim não é por um acesso de fúria cega (quem leu sabe). No Reino do Amanhã, por exemplo, o Coringa também mata a Lois Lane, mas a atitude do Homem de Aço é simplesmente perder a fé na humanidade, não pelo Coringa, mas pela multidão que ovaciona Magog. Sobre o problema da morte de Zod, tenho esse texto também: https://quadrinheiros.com/2013/07/13/man-of-steel-um-superman-para-o-seculo-xxi-com-spoilers/
Como dizem, o fim sempre acaba justificando os meios, pois, a ética é subjetiva e nebulosa, tanto é que alguém poderia dizer que o Coringa venceu, pois, provou seu ponto de vista: Basta um dia ruim (em Piada Mortal). E o Superman agiu de forma fria e premeditada. Isso pesa num tribunal.
Pingback: Cinco (outras) vezes em que os heróis foram o pior de nós | Quadrinheiros
Sempre uma excelente leitura. Ainda mais nesses tempos de loucos onde decisões fáceis são tidas como verdadeiras panaceias para todos os males…
Pingback: O que o Superman faria? – Quadrinheiros – Seu amigo virtual!