Quando a sede por heróis se torna um erro fatal.
Há algumas semanas, o portal Uol dava notícia de que o juiz da 13ª Vara Federal, Sérgio Fernando Moro, era fã de Batman e do Homem-Aranha, segundo revelou o dono da banca de jornais frequentada pelo magistrado. Acrescentou que o juiz teria conduta discretíssima nesse hábito.
Invés de exagero do jornaleiro que queria se fazer íntimo de celebridade, o próprio Moro admitiu se inspirar nos heróis da ficção, como apontou matéria publicada no El País em julho de 2015, ocasião do Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo em São Paulo:
“Como eu gostava muito de revista em quadrinhos, lembro daquelas frases do Homem-Aranha onde dizia ‘quanto maior o poder, maior a responsabilidade.’”
Quem não sabia, ou para uma parcela que toma o hábito de ler gibi algo próximo de uma virtude, poderia ser algo como uma confirmação. Um pouco como a revelação de que leitor e juiz compartilham ideais, valores morais, éticos e – por que não? – jurídicos, alinhados numa visão de mundo bastante íntima. “Hááá!”, diria o leitor de gibi/fã de Moro, “Vai Braziu! Com o Moro tamos no caminho certo!”
Estamos?
Ok. Exagero. Improvável sujeito que diga algo assim. Em voz alta, pelo menos. Mas parece impossível existir aquele que não acredite em sua própria boa-fé. Até mesmo, especialmente, entre criminosos, como já anotamos por aqui.
Dado valioso sobre a atuação da magistratura e raramente mencionada: aos juízes é vedada atividade político-partidária, segundo rege o parágrafo único do Artigo 95 da Constituição Federal.
Da mesma forma, a Constituição veda as mesmíssimas atividades político-partidárias aos integrantes do Ministério Público, como do procurador-geral Rodrigo Janot e os procuradores que atuam na Operação Lava-Jato, segundo prevê a alínea “e” do inciso “II” do §5º do Artigo 128. Ou:
“Art. 128. O Ministério Público abrange:
II – os Ministérios Públicos dos Estados.
§5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:
II – as seguintes vedações:
e) exercer atividade político-partidária;”
Pois bem. Até que se prove o contrário, nem os membros do Poder Judiciário nem do Ministério Público têm se deixado levar por esta ou aquela inclinação política, pouco importa o que se tenha visto ou falado no Facebook, na feira ou da boca de dentista. Não é crime, porém, o orgulho de fazer o próprio trabalho, volúpia que nem Ministério Público nem magistrados parecem esconder.
Que fique de lado também a (ir)responsabilidade da imprensa em dar voz à qualidade duvidável de informações “vazadas” de investigadores de operações anti-corrupção no Brasil, como no caso da última semana sobre as gravações feitas por Joesley Batista. Afinal, os pasquins dispõem dos melhores recursos para sentar o braço na própria atuação, e quando o fazem, mostram o que têm de melhor. A questão aqui é outra.
O que chama atenção e é área de interesse da casa são as formas com que certos vícios políticos se propaguem ao longo de nossa história nacional na forma de culto heróico. Parente do clientelismo ou do nepotismo, o caso da celebração de Sérgio Moro, do poder Judiciário ou do Ministério Público, parece espreitar uma face de salvacionismo, ou, digamos, uma espécie de “messianismo super-heróico”.
Como avaliou o historiador José Murilo de Carvalho, autor do clássico Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi:
“[…] Desde 1930, 87 anos atrás, só quatro presidentes eleitos popularmente completaram os mandatos: Dutra, JK, FHC e Lula. Os dois últimos foram alvos de campanhas de impeachment. É um desempenho desastroso. Uma das possíveis causas do fenômeno pode ser a rapidez com que o povo invadiu a arena política via eleições. Em 1945, 13% da população votavam; hoje 68% o fazem. O sistema teve e continua a ter dificuldades em absorver esta invasão por conta das pressões por ela trazidas na direção de políticas redistributivas. […]
A PF, o MP e o Judiciário têm mostrado nos últimos movimentos que estão visando gregos e troianos, o que legitima sua atuação. Dessa crise toda, têm resultado dois pontos positivos para a República: o silêncio dos militares e o avanço na democratização da justiça. A situação não é sem risco. O inédito protagonismo do Poder Judiciário coloca em questão a representação via eleições e o equilíbrio entre os poderes. […]”
Em outras palavras, inédito como foco do prestígio político, o Poder Judiciário jamais o deveria possuir, afinal a própria Constituição veda esse atributo, certo? No entanto, no desempenho de sua função, o Judiciário vem ganhando não só apoio, mas verdadeira devoção, tal como já vimos… onde mesmo?
Ah, sim.
Praticamente todos os heróis de quadrinhos mais queridos pelos leitores, como Batman e Homem-Aranha, também admirados por Sérgio Moro, têm uma característica comum: eles dispõem de um compasso moral infalível.
O roteirista Mark Waid, em o Reino do Amanhã, disse com todas as letras: o maior poder do Superman é a clareza de distinguir o certo e o errado. Essa infalibilidade, se não é possível como dotação natural (ou sobrenatural), certamente é almejada, talvez adquirida via treinamento ou aprendizagem.
No Brasil, terra em que somos assolados por práticas grandes e pequenas de corrupção – ou seja, onde o “mal” e a “vilania” grassam de forma epidêmica – o mais próximo de se alcançar a “estatura” de infalibilidade é a magistratura. Pense bem. Quantos de nós – que não são jovens demais, nem estrangeiros, nem ET’s – desconhecem aquele velho mito do impossível “concurso público para juiz”?
Além de selecionar os melhores candidatos aos cargos, para o resto daqueles que nunca vão participar desse processo de seleção, os “insuperáveis” requisitos para se virar juiz garantem que o ofício de magistrado ganhe os contornos da infalibilidade heroica. E isso, do ponto de vista vivência na res-pública, como prática democrática, é fatal.
“Como assim, Velho? Vamos todos morrer porque acreditamos no Ministério Público, Poder Judiciário, no Janot, no Moro?!?”
Não, leitor imaginário com voz de boneco ventríloquo. Significa que confiar cegamente na infalibilidade de qualquer poder do Estado ou pessoa da administração pública significa a morte do princípio de cidadania. E a melhor forma de evitar cair na armadilha da fé cega é a formação, a leitura, o estudo. Especialmente daquilo que você não sabe. Ou como ensinou o Prof. José Murilo:
“[…] Não há república democrática sólida sem cidadãos capacitados para intervir na política de maneira efetiva. O eleitor pobre vota racionalmente, mas é limitado em sua liberdade pelas condições materiais de vida e pela escassez dos recursos políticos conferidos pela educação. Com os níveis de desigualdade que temos não será possível construir uma república democrática. O grande problema, então, é forjar um sistema político que seja capaz de reduzir a desigualdade combinando desenvolvimento e distribuição. […]”
PS – Agradecimentos especiais ao Nerdbully e ao Homem-Pasquim, que indicaram os textos e ajudaram a pautar o post (com ou sem birinaits).
Ainda não li “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi” (embora o mesmo esteja em minha lista de leituras), mas recentemente li do mesmo autor a obra “Cidadania no Brasil: O Longo Caminho” onde encontrei na página 223 essa passagem que, acredito, tenha a ver com o tema aqui tratado, especialmente o penúltimo parágrafo: “Ligada à preferência pelo Executivo está a busca por um messias político, por um salvador da pátria. […] Pelo menos três dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular após 1945, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor, possuíam traços messiânicos. Sintomaticamente, nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por não se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com o papel do Congresso.”
Parabéns pelo texto!
Citação excelente!
Acho que é a mesma informação que ele usou na entrevista pro Le Monde.
Acredito que existe muita coisa, muito melhor escrita por gente muito competente, como o Prof. José Murilo, que deviam ser lidas antes de cada postagem “engajada” de twitter, Whatsapp ou Facebook.
Como disse um amigo meu, “a solução é ficar sem presidente e governar num grupo de Whatsapp”… =|
Abs!
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Artigo recomendável para entendermos a necessidade de não tratarmos ninguém como heróis, principalmente, servidores de alto-escalão do poder público.
Um juiz por exemplo, não importa a sua imparcialidade, ou não, em nenhum momento pode ser visto como vilanizado, ou ser visto como herói.
Há uma diferença muito grande entre criticar a consciência de um juiz, ou elogiar a retidão e a sua forma íntegra de conduzir o seu ofício.
Excelente artigo sobre a representação de uma personalidade pública nos quadrinhos.
Concordo plenamente!
Valeu Sérgio!
Abs.
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