Sem que ninguém soubesse, em 1982, Miracleman mudou os quadrinhos. Sem ele talvez não houvesse Sandman, Watchmen, Asilo Arkham, Hellblazer, Preacher, Authority, pra ficar em poucos. Neil Gaiman, Brian Bolland, Grant Morrison, Warren Ellis, Garth Ennis, Mark Millar seriam ilustres desconhecidos. Sem Miracleman é bem possível que você (com menos de 30 anos) não saberia ou gostaria tanto de quadrinhos.
Miracleman (ou Marvelman), nas mãos de um jovem e desconhecido Alan Moore, deu aquele passo na direção que os quadrinhos mainstream hesitavam seguir. O herói foi a demonstração didática de que um super-humano, Übermensch autêntico, pode fazer qualquer coisa, menos impedir a transformação radical do mundo que vive.
A publicação de Miracleman foi uma revolução silenciosa. Muita gente sabe que existe o herói, mas pouquíssima gente leu as histórias. O personagem passou anos exilado num limbo editorial desde 1994. Naquele ano a editora americana Eclipse, última a publicar as histórias, declarou falência.
Desde então Miracleman tem sido objeto de um longo litígio. Envolve nomes de gente importante no meio dos quadrinhos. Entre eles, Todd McFarlane, criador do Spawn e co-fundador da editora Image Comics, Neil Gaiman, o celebrado autor de Sandman (que recebeu de Alan Moore sua parte nos direitos Miracleman), e Joe Quesada, ex-editor chefe da Marvel Comics, que anunciou a compra total dos direitos do personagem em 2009.
A disputa não é para pouco. Quase 30 anos antes de se tornar uma comodity de valor excepcional, Miracleman nasceu sob o estigma do plágio. Foi criado nos anos 50 como uma releitura bem fuleira do Capitão Marvel, o Shazam, da DC/Fawcett Comics.
Em 1954, a editora inglesa L. Miller & Son Ltd. perdeu os direitos de publicar o Capitão Marvel americano, um sucesso de vendas entre os leitores britânicos. Para manter as vendas, Mick Anglo, artista da L. Miller, recriou um personagem praticamente idêntico: um jovem repórter, Mick Moran (ao invés de Billy Batson), ao gritar “KIMOTA!” (ao invés de “SHAZAM!”) se transforma no poderoso super-herói Marvelman (ao invés de Capitão Marvel).
Para manter a semelhança do equivalente americano, Anglo criou também versões para o Capitão Marvel Jr. e de Mary Marvel, parceiros mirins de Shazam. A versão “plagiada” inglesa tinha o Young Marvelman, alter-ego de Dicky Dauntless, e Kid Marvelman, identidade heroica do adolescente – e imaturo – Johnny Bates.
As edições da L. Miller fizeram um sucesso razoável até 1963, já sem a participação de Mick Anglo nos últimos números. Chegaram a ser publicadas no Brasil pela RGE (então um novo selo da Globo para publicação de quadrinhos na década de 1950), e ganhou o nome de Jack Marvel. Descontinuadas naquele ano, histórias do Marvelman só voltaram a chamar a atenção quando novos números foram publicados em 82.
Em termos criativos, foi naquele ano que se realizou uma revolução nos quadrinhos. Ela aconteceu dentro de um contexto, o que faz toda a diferença, na revista Warrior.
A Grã-Bretanha, no final da década de 1970, passava por mudanças delicadas. Enquanto o Partido Trabalhista e Conservador se estapeavam no parlamento, o movimento punk ganhava força.
A estética agressiva, a atitude niilista, o sarcasmo do “faça você mesmo” em calças velhas e jaquetas rasgadas, o ritmo acelerado do “punk 77” emergiam do circuito underground, das bandas desafinadas de Camden Town para o sucesso internacional de Sid Vicious , os Sex Pistols e seus derivados.
Britânicos, ao final da década, tinham reputação de vanguarda artística. Qualquer subproduto era visto como novidade e disputado a tapa por empresários astutos. Nas mãos de um Malcolm McLaren tudo virava moda.
Alguns britânicos, recém chegados ao mercado e já desempregados, eram jovens artistas. Jornalistas, redatores e desenhistas de tiras em jornais de bairro, fanzines de música, teatro e ocultismo. Não tinham educação formal, mas não deixavam de ser eruditos. Gostavam de Alan Poe, Hunter Thompson, Aleister Crowley, Nietsczhe, Kerouac, Dumas, Cervantes, Shakespeare além de, é claro, quadrinhos americanos.
Cultos desocupados, refinados niilistas, eles foram arregimentados por Dez Skinn para trabalhar na Marvel UK.
Dez Skinn tinha sido escolhido a dedo por Stan Lee para a direção da editora, uma espécie de subsidiária inglesa da Marvel nova-iorquina. Fato curioso, o antecessor de Skinn foi Neil Tennant, que mais tarde ficou famoso como vocalista do Pet Shop Boys.
O dinheiro, pouco que havia, estava nos heróis de quadrinhos. A atração era inevitável. Entre os talentos da Marvel UK, Skinn reuniu uma equipe legendária. Entre eles estavam Steve Dillon (co-autor de Preacher), John Wagner (de Judge Dredd), Dave Gibbons (de Watchmen), Grant Morrison (de Asilo Arkham), David Lloyd (de V de Vingança), Alan Davis (Excalibur) e do próprio Alan Moore.
Além de adaptarem para o público inglês as edições americanas do Hulk e do Homem-Aranha, esses artistas usavam o espaço para criar suas próprias histórias. As mais célebres do período são as do Capitão Britânia. Com estes personagens, vários autores tiveram a oportunidade de fazer histórias de modo inovador e pessoal. Mas ainda estavam usando ferramentas dos outros.
Em 1980, insatisfeito com a política de propriedade intelectual da Marvel, Dez Skinn puxou o carro. Fundou sua própria editora, a Quality Comunications. Lá pôde continuar o trabalho que aprendeu e aperfeiçoou na antiga casa. Levou com ele todos os artistas, seus amigos, que aproveitaram a oportunidade para mostrar com total liberdade tudo aquilo que eram capazes. Foi na Warrior, revista principal da Quality, que a coisa tomou impulso.
Em 1981, os direitos de publicação de Marvelman, então um personagem obscuro da década de 50, foram comprados a preço de banana por Dez Skinn. Em março do ano seguinte o personagem foi entregue aos cuidados de Alan Moore (roteiro) e Gary Leach (desenhos).
Importante lembrar, naquele mesmo ano e mês, além de Marvelman, Skinn incumbiu Moore de mais dois títulos pra escrever. O obscuro e original Bojjefries Saga, de sucesso desprezível. Mas ganhou carta branca pra recriar Night Raven, um detetive mascarado cujos direitos tinham ficado com a Marvel UK. Pra evitar um processo por plágio, Moore e seu parceiro desenhista, David Lloyd, criaram uma espécie de derivado, um herói anarquista radical, o protagonista de V de Vingança.
Ao ressuscitar um personagem cuja última aparição tinha sido em 1963, era de se esperar um reboot, uma história introdutória que apresentasse Marvelman para novos leitores. Não foi bem isso que Moore e Leach fizeram.
Eles não rejeitaram as histórias dos anos 50 e 60, mas continuaram de onde pararam. Assimilaram aquelas antigas de um jeito inédito nos quadrinhos, a narrativa moldura.
A influência da história moldura é objeto de especulação e celeuma. Uns dizem que Alan Moore se inspirou no filme expressionista alemão O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene. Outros dizem que a influência vem das Matrioshkas, as bonecas russas. Os mais céticos encerram o debate apontando a culpa das cebolas.
São 3 arcos principais de histórias: A Dream of Flying, The Red King Syndrome e Olympus além de um “apêndice”, apropriadamente chamado de Apocrypha, escrito pelo então novato Neil Gaiman.
No primeiro arco, A Dream of Flying, o leitor é reapresentado a Mike Moran, um repórter freelance. Casado, sem filhos, acima do peso e em meia idade, a vida de Moran é trivial. Exceto pelos sonhos constantes de uma vida que não é sua e de que ele não se lembra quando desperta.
Moran sonha a vida heroica de Marvelman e seus parceiros mirins. São simples como os quadrinhos dos anos 50, uma brincadeira infantil onde tudo dá certo no final. As coisas mudam quando Moran, refém de terroristas numa usina nuclear, pronuncia a palavra KIMOTA mais uma vez. Sob a explosão cintilante de um raio estava Marvelman, jovem, esbelto, estética e intelectualmente perfeito.
Este 1º arco se encerra com o retorno de Marvelman à vida, a restauração de sua memória e seu reencontro com Kid Marvelman, ou Johnny Bates, seu antigo sidekick. Já adulto, Bates tornou-se um vilão, descontrolado e psicótico. Liz Moran, esposa de Mike, engravida, mas do perfeito Marvelman e não seu marido medíocre. É ela a primeira a deduzir que Marvelman e Mike Moran são uma única mente com dois corpos que trocam de lugar.
O 2º arco, The Red King Syndrome (referência ao rei adormecido das histórias de Alice no País das Maravilhas) conta a origem real do herói. Ele descobre que as histórias dos anos 50, memórias e sonhos do Marvelman do “presente”, eram implantes de memória. Que na verdade Moran e seus parceiros (incluindo uma Miraclewoman) eram cobaias de um tal “Projeto Zaratustra”. Que tudo era resultado de engenharia reversa de uma nave alienígena. Que eram controlados pelo maquiavélico Dr. Gargunza, cientista com gana pela vida eterna num corpo perfeito.
A partir dali, para o leitor e para quem vive no mundo de Marvelman, a história dá uma arrancada. Causa vertigem. A intenção de Alan Moore é mostrar que a presença de um sujeito como Marvelman leva a mudanças drásticas, aceleradas e inevitáveis para o resto do mundo.
A passagem do 2º pro 3º arco marca a alteração do nome do herói, de Marvelman para Miracleman, provocada pela desagregação da Quality Comics e a compra do personagem pela editora Eclipse em 1983.
O 3º arco, Olympus, um delírio utópico de Alan Moore, começa com o ingresso de Miracleman numa comunidade alienígena inter-espécies. Uma espécie de ONU que deu certo além de qualquer expectativa. Essa autoridade superior ensina que Miracleman deve guiar a evolução definitiva dos humanos na Terra. O cruzamento genético (e moral) iniciado por ele levará a superação de todos os atrasos, extirpação de todos os males, remissão de todos os vícios. Mas antes ele deve enfrentar um último desafio: Kid Miracleman.
Clímax da história, o duelo final de Miracleman e Johnny Bates é um retrato da atrocidade. Com os desenhos de John Totleben, Moore descreveu em detalhes o terror e a devastação que seriam provocadas pelo choque desses seres na Terra.
Note-se os corpos empalados, as peles de pessoas penduradas como roupas em varais, as crianças de olhos arrancados, a chuva de membros decepados. A inspiração da imagem, segundo Moore, foram as telas O Triunfo da Morte, do pintor belga Pieter Bruegel…
…e O Massacre do Dia de São Bartolomeu, de François Dubois.
A derrota de Kid Miracleman é sucedida pela submissão do mundo à vontade de Miracleman e seus aliados. Assumindo a função explícita de deuses na Terra, eles fazem reformas radicais. Destroem todas as armas do mundo, incineram todo dinheiro e reabilitam criminosos com o auxílio de uma simples medicação.
Governos, impotentes, aceitam tristemente que não exercem mais nenhum poder diante de tais seres. Sobre as ruínas e cadáveres de uma Londres devastada, Miracleman ergue um monumental palácio flutuante. É feito de aço inoxidável e tem quilômetros de altura. Um olimpo a ser escalado por qualquer humano ansioso por uma audiência com seu “deus”.
Embora as reformas feitas pelos deuses-heróis sejam positivas, paira no ar o desconforto de que a Terra passou a viver sob um regime totalitário. O distanciamento de Miracleman do resto da humanidade fica claro quando Liz, mãe de sua filha, recusa as dádivas oferecidas por ele e ordena que nunca mais a encontre. Enquanto contempla o mundo perfeito que criou, Miraclaman se pergunta por quê.
Seja pelo choque das imagens do genocídio, seja pelo deslumbramento que as reformas inspiram, Olympus é um momento de catarse. Como um todo, Olympus manifesta no século XX as aspirações românticas do século XIX. É eugênico, evolucionista, melancólico, racionalista, nostálgico e futurista. Como representação, converge mito e história, literatura e pasquim, ópera e cultura pop.
Mesmo que os leitores não soubessem, ícones teóricos, cânones da arte e da filosofia, estavam contemplados nas mentes de Moore e Totleben. Uma combinação bastante peculiar voltada para um público jovem numa mídia barata.
Exagero dizer que houvesse domínio profundo, acadêmico, desses referenciais. Mas em Olympus foram usados numa espécie de jam session em quadrinhos. Uma composição cuja melodia tornou-se sedutora demais pros editores americanos ignorarem. E pela primeira vez.
Que hoje seja natural dimensões pretensiosas nas HQs, referências sofisticadas e finais utópicos com jeitão de manifesto teórico ou sociológico (a ausência de algum desses fatores costuma provocar a fúria dos fãs exigentes). Mas antes de Miracleman os quadrinhos eram só, digamos, quadrinhos. Auto-referentes e um bocado contidos.
Como reconheceu Grant Morrison, “Fui atraído novamente pelos quadrinhos. Para mim, Marvelman era o estágio seguinte após o naturalismo doméstico do Capitão Clyde [personagem canhestro de um pequeno jornal de bairro abandonado por ele anos antes], e eu não podia deixar de explorar essas fronteiras que se abriam à minha frente.”
Em 1991, depois do fim de Olympus, Apocrypha, sob a pena de Neil Gaiman, Miracleman vinha sendo publicado pela editora Eclipse. Nessa altura Alan Moore tinha se tornado uma espécie de celebridade.
Em boa medida, por conta de sua aparência e personalidade, moldada pelas expectativas de quem via quadrinhos como algum tipo de oráculo espiritual ou político.
Para esses, Moore era um verdadeiro guru. Além disso, V de Vingança era outro sucesso na Inglaterra e chamava muita atenção. A invasão britânica nos quadrinhos, menos que uma invasão, era quase um convite desesperado.
Posfácio…
Em 1983, dos Estados Unidos, Len Wein, criador do Monstro do Pântano, ligou para Alan Moore. Tinha uma oferta de emprego para escrever as histórias do Monstro. Incrédulo, Moore teria desligado na cara de Wein. Duas vezes. Na última tentativa, agora convencido, Moore aceitou um encontro com o americano.
Wein certa vez relembrou o episódio. Falou que Moore chegou atrasado, usando um paletó de mais de 40 anos, camisa amassada, uma gravata com estampa de piano e cartola. Alan se desculpou por chegar atrasado, explicou que tinha ido ao oculista. Disse que a visão de um olho estava perfeita, mas a outra nem tanto. Que o doutor recomendou usar lentes adequadas. Alan falou que considerou usar um monóculo para o olho ruim, mas decidiu abandonar a idéia. Ao perguntar por que, Alan Moore respondeu: “Bom, pra ser honesto, eu tive medo que usar um monóculo me fizesse parecer meio estranho.”
PS – Agradecimentos ao Henrique, o pirata quadrinheiro mais erudito que já vi.
Caros, texto excelente, com reflexão pertinente sobre o lugar de Moore nesse entrecruzamento de erudição e pop, história e estética, quadrinhos ingleses e americanos, etc. Gostei do site e convido-os ao debate no post do nosso blog Raio Laser: “O que podem os quadrinhos?”
http://www.raiolaser.net/2013/01/o-que-podem-os-quadrinhos.html
Valeu Ciro!
Gostei muito do seu blog também. Debater é nosso imperativo!
Obrigado pela indicação.
Ótima matéria Velho!!! Lembro-me das conversas sobre este título e tantos outros na PUC.
Parabéns!!
Valeu!
Sem você não tinha texto nenhum! XD
Não vamos esquecer da grande conclusão: na dúvida, presenteie com Sandman!
Que texto fantástico, só tenho à agradecer ao autor do mesmo. Fui atrás da revista e é realmente maravilhosa, agora o jeito é ir atrás de “Supreme”, outro super-herói que dizem que Moore “causou” com ele! E novamente, muito obrigado!
Que matéria bacana !! interessante ! muito bem feita !!!
Ryan, esqueça a matéria e leia o gibi se conseguir encontrar. Não fiz nenhuma justiça ao quadrinho, acredite.
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Muito legal, ótima matéria, com certeza continuarei comprando Miracleman, estava em dúvida mas agora já sei oque esperar, muito obrigado.
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