Confinamento, ócio e lampejos de lucidez.
Pra ficar bem claro: a epidemia do COVID-19 é o primeiro evento do século XXI que afetou de forma direta e irrestrita toda a população do planeta. Confinamento, auto-isolamento e rituais rígidos de higiene passaram a ser rotina até entre os mais renitentes velhinhos.
Se você vive em São Paulo, está em quarentena desde ao menos o dia 24 de março. De lá pra cá é de se perder a conta quantas notícias, posts e mensagens que trazem alguma variação da frase “em tempos de coronavírus”. Já mais raro é quem perceba a alusão ao livro quase homônimo do Gabriel Garcia Marques, ótima sugestão para a quarentena, aliás.
Como apreendeu de modo didático/petulante Bruno Maron em blog de própria lavra, nesse tempo surgiu uma fauna de tipos sociais. Das franjas do espectro digital emergiu uma multidão de narradores titubeantes, youtubers recalcitrantes, redatores de whatsapp e gladiadores de Facebook, sempre prontos a emitir postulados sub-embasados, piadelas sem noção e cauções apocalípticas, amiúde temperadas por paranoias conspiratórias ou recalques ideológicos mal disfarçados. Lucro mesmo, só pra quem faz memes. Ou então pra imprensa profissional, que finalmente encontrou seu lugar ao Sol como ente dotado de prestígio social e fonte segura de informações.
Já aqui, local de lúdica lucidez, não podia ser diferente. E tal como a feira que você não deve mais visitar desmascarado, se oferece o legume mental mais fresquinho que você vai ver hoje. Uma meia dose de reflexão travestida de diversão. Aquele pé de prosa com gente que agora está longe, o papo que viria à tona no fim da primeira garrafa e antes da porção chegar.
Além dos macabros efeitos, a epidemia revelou uma verdade sobre todos nós: somos todos um bando de viciados. Famintos, adictos, maníacos, tarados por uma mesma droga. Somos viciados em histórias. Não, não aquela que você achava um saco na escola e matava sempre que caía na última aula. Mas as estórias, as narrativas de ficção, aventuras, dramas, comédias e contos, em que você mergulhava ao ir pro cinema, ao jogar videogame, ao ligar a TV, ao abrir um livro, ao ler seu gibi.
Após se deleitar na série, filme ou livro, depois de passadas e devoradas as opções de histórias, coisas que você não tomaria contato em outra situação, restou a sensação de “e agora?”. E pra quem acompanha quadrinhos, o momento não podia ser mais traumático.
No último dia 24 de março, a Diamond Comics Distributors, Inc., maior empresa de distribuição de quadrinhos dos Estados Unidos, anunciou a suspensão das atividades de fornecimento de gibis aos revendedores, as livrarias e comic shops em todo mundo. Em carta aos lojistas, afirmou Steve Geppi, CEO da Diamond, “minha única conclusão lógica é de cessar a distribuição das edições semanais até haver uma clareza maior no processo de disseminação da doença”.
Pouco depois, ao site Newsarama, a Marvel também anunciou que iria suspender a produção – e a publicação – de aproximadamente um terço das edições a serem lançadas entre maio e junho e que cerca de 15% a 20% dos títulos solicitados pelos consumidores seriam afetados. Isso sem falar nos grandes lançamentos de cinema, como o novo filme do 007, Mulan, Viúva Negra, e outros, todos reagendados.
E agora, José, sozinho no escuro, qual bicho-do-mato?
Agora você reaprende a parar. Quem sabe, depois de tudo isso, até não esqueça. Mas é a hora ideal de perguntar: qual a razão para essa ânsia de consumir histórias? Robert McKee, em seu livro Story – Substance, Structure, Style and the principle of Screenwriting (NY: Harper Collins, 1997), sugere algumas respostas:
Histórias não são apenas a nossa mais prolífica forma de arte mas rivaliza com todas as outras atividades – trabalho, lazer, comer, se exercitar – que realizamos quando despertos. Contamos e ouvimos histórias tanto quanto dormimos – e até enquanto dormimos. Por que? Por que tanto do nosso tempo é ocupado dentro destas histórias? Porque como nos conta o crítico Kenneth Burke, histórias são nosso equipamento para viver.
Dia após dia nós buscamos uma resposta à eterna questão levantada por Aristóteles em Ética: como um ser humano deve viver sua vida? Mas a resposta nos ilude, escondida por trás de horas corridas enquanto batalhamos para adequar os meios disponíveis aos nossos sonhos, unir ideias a paixões, transformar desejos em realidade. Somos varridos por um vagão de riscos ao longo do tempo. Se paramos para reconhecer seu padrão e sentido, a vida, como uma Gestalt, está de ponta-cabeça: primeiro é séria, depois é cômica; estática depois frenética; significativa e sem nenhum sentido. Eventos mundiais momentâneos estão além do nosso controle enquanto eventos pessoais, a despeito de todos os esforços em manter nossas mãos no volante, mais nos controlam do que são controlados. (tradução nossa, p.11)
Noutros termos, conquanto a vida real se revela caótica, violenta e arbitrária, a ficção celebra, organiza, direciona e inspira mudanças. Sedutora, a (es)história confere dramaticidade teatral aos conflitos da realidade. Realidade externa que resiste em ser domada pela narrativa interna que habita a nossa subjetividade coletiva. Quem discorda, tente explicar a razão da ansiedade pelo próximo capítulo das disputas por protagonismo no Palácio do Planalto. Disputas, aliás, que competem por espaço nos jornais com a própria epidemia, com direito a torcida, panelaço e gritaria, pontualmente às 20h30, desde que começou a quarentena.
Ao menos desde a invenção da máquina a vapor, ética profissional virou sinônimo de trabalho ininterrupto. Vez que a COVID-19 ganha força justo no ritmo e ambiente em que esse valor é lei, vem o esforço excruciante de ir na contramão, sob pena da tragédia. Que fique bem claro, pela primeira vez no século XXI, o vício em histórias ganhou força e incentivo. E a verdade é que nosso vício dá espaço para narradores demais, os bons e os ruins.
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