“Sempre que um grupo de pessoas é ensinado a odiar outro grupo, inventa-se uma mentira para insuflar o ódio e justificar um complô. É fácil encontrar o alvo, porque o inimigo é sempre o outro.”
Will Eisner
Pra quem não conhece, Will Eisner é um dos “pais fundadores” das histórias em quadrinhos tal como são conhecidas hoje. Está ao lado de Jack Kirby, Stan Lee, Hal Foster, Jerry Siegel, Bob Kane e Alan Moore. Embora os personagens criados por Eisner não sejam famosos como o Capitão América, Superman ou Batman, é graças também a ele que as histórias em quadrinhos criaram raízes, características básicas, marcos indispensáveis e se constituíram como um gênero da Arte. Não é pouca coisa.
Em O Complô – A história secreta dos Protocolos dos Sábios do Sião, publicado no Brasil em 2006 pela Companhia das Letras, Will Eisner usou a narrativa gráfica para abordar um tema de valor bastante pessoal e esclarecer um dos maiores engodos forjados ao longo da História: o suposto plano de dominação mundial arquitetado por uma sociedade secreta de judeus.
De forma didática, a obra narra os acontecimentos que levaram à publicação dos tais “Protocolos” na Rússia em 1905, e como ele se tornou um dos principais sustentáculos retóricos do que viria a ser o partido Nazista na Alemanha.
Eisner mostra, por meio da linguagem que tem absoluta destreza, como Maurice Joly, um escritor francês medíocre, publicou o livro O diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, em 1864. A obra era nada menos que um ataque feroz a Napoleão III, “denunciando” as táticas maquiavélicas do imperador francês. Joly esperava que sua obra despertasse a revolta popular e levasse à derrubada daquele que, na perspectiva dele, era apenas um demagogo oportunista.
Anos depois, 1898, em Paris, Mathieu Golovinski, um burocrata russo exilado, ansioso por ascender na estrutura do governo imperial czarista, aliou-se às lideranças conservadoras e falsificou o livro de Maurice Joly. Nas mãos de Golovinsky, o livro se transformou num documento que servia como “prova” ao influenciável Tsar que os judeus estavam por trás das revoltas populares que se agravavam no império.
Depois da primeira publicação na forma dos Protocolos dos Sábios do Sião na Rússia, Eisner mostra uma sequência desenfreada de traduções e republicações, como a alemã, que chegou às mãos de Adolf Hitler. É desta falsificação que o futuro Führer extraiu as “evidências” da conspiração judaica mundial, e empregou como instrumento para justificar a “solução final”, o Holocausto, que matou cerca de 6 milhões de judeus entre 1939 e 1945.
A despeito dos protocolos serem copiosamente desmentidos inúmeras vezes, como a publicação do jornal inglês The Times em 1921, ou do relatório dos senadores americanos Thomas Dodd e Kenneth Keating em 1964, Eisner chama atenção sobre como a fraude ressurge na mesma frequência e intensidade com que o ódio é empregado como instrumento de mobilização.
Eisner mostra de forma simplificada e intimista as sementes de um fenômeno social, em que frustrações, preconceitos e desejos pessoais são explorados por interesses alheios diversos, com objetivos políticos, econômicos e sociais bastante pontuais. Este fenômeno é chamado guerra.
Importante lembrar, em 1939 os Estados Unidos, conforme definia o Congresso, optou por não se envolver em confrontos entre nações estrangeiras, atentos à guerra que se iniciava com a invasão das tropas alemãs na Polônia. Como diziam os termos da Public Law 54 de 1939,
Enquanto os Estados Unidos, desejando preservar sua neutralidade nas guerras entre nações estrangeiras e também desejando evitar seu envolvimento nelas, voluntariamente impõe sobre os seus por meio de legislação doméstica restrições definidas nesta resolução conjunta; (EUA, PL 54/1939.)
Na época, o presidente Franklin D. Roosevelt era um forte opositor ao isolacionismo e neutralidade americana na guerra contra a Alemanha. Ou seja, era contrário ao posicionamento do Congresso até então. No entanto, vozes como a do célebre piloto de avião Charles Lindenbergh, um isolacionista convicto, foram silenciadas após o ataque das forças navais japonesas à Pearl Harbor em 7/12/1941.
A declaração de guerra contra o Japão foi formalizada por meio da Public Law 328 de 8 de dezembro 1941. A declaração de guerra contra a Alemanha veio pouco depois, na Public Law 331 de 11 de dezembro de 1941. Você pode ler os termos das declarações de guerra, mas certamente vai lembrar mais dessa imagem:
Em 1945, nos estertores da guerra, o General Dwight Eisenhower, comandante geral das forças Aliadas, relatou ao subordinado, o general George Marshall, os efeitos do ódio incitado contra “o outro”:
Mas a mais interessante – embora horrível – visão que tive durante minha viagem foi a visita a um campo de confinamento alemão perto de Gotha. As coisas que vi se perdem na descrição. Enquanto andava pelo campo, encontrei três homens que foram prisioneiros e que de alguma forma conseguiram fugir. Conversei com eles com a ajuda de um intérprete. A evidência visual e o testemunho verbal da fome, crueldade e bestialidade eram tão avassaladoras que me deixaram passando mal. Em um quarto, onde eles eram empilhados em vinte ou trinta homens, mortos pela fome, George Patton não teria entrado. Ele disse que teria vomitado se tentasse. Entrei mesmo assim, para que pudesse dar evidência em primeira mão do que vi se caso, no futuro, surja uma tendência em acusar estas alegações como mera “propaganda”.
Não é por acaso, o mesmo Dwight Eisenhower, então presidente, foi um defensor do Smith-Mundt Act, uma lei congressional de 1948 que exigia a promoção do melhor entendimento entre as nações e os Estados Unidos. A lei determinava o fomento de uma melhor compreensão entre os povos por meio de um serviço de informações, intercâmbios de pessoas, conhecimentos e habilidades nos campos da educação, das artes e das ciências. Foi esta lei que direcionou dezenas de programas de intercâmbio internacional e inspirou a criação das agências nacionais e estaduais de fomento à pesquisa que existem no Brasil.
Se a pertinência de O Complô não fica clara, valem as palavras de Umberco Eco, que introduz a obra de Eisner:
Depois do artigo que saiu no The Times de Londres, em 1921, no qual se revelou o plágio, bem como em todas as vezes que alguma fonte definitiva confirmou a natureza espúria dos Protocolos, houve sempre alguém que os publicou novamente, defendendo sua autenticidade. E a história continua a mesma hoje na internet. É como se, depois de Copérnico, Galileu e Kepler, se continuasse a publicar livros didáticos afirmando que o Sol gira ao redor da Terra.
Aqui, sobre os ombros de Eisner, Eco e Eisenhower, tentamos enxergar ao longe. E ao longe fica claro, a história não deixa esquecer, o ódio e a guerra são as mesmas, uma só, lá, antes e à frente.
Uma análise e estudo incrível sobre personagens importantes da Segunda Guerra Mundial, parabéns pessoal do Quadrinheiros! Sempre acompanho seus textos e na minha opinião, todos tem um ponto em comum: vocês fomentam o gosto pela história e a importância de ampliar nosso conhecimento, e como a soma dessas duas coisas nos ajudam e derrubar qualquer tipo de conhecimento.
Aprendi muita coisa nova sobre o Eisenhower, Eisner e principalmente sobre como mentiras e boatos são espalhados para que governos e ideologias tiranas sejam mantidas no poder.
Nunca comentei por aqui, mas gostei tanto da leitura que vocês me proporcionaram, que achei que o mínimo que poderia fazer para “retribuir” era dar um feedback positivo. Continuem com o trabalho de vocês, nós leitores de quadrinhos ficamos muito gratos.
Valeu Vinícius!
Menos dois anos de terapia por causa desse comentário!
Abração! =]
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