O que revelam os grupos de super-heróis sobre o Estado, a natureza e a cultura?
Nas histórias em quadrinhos, a ação dos heróis envolve proezas físicas, lutas com os vilões, acrobacias audazes e, em grau maior ou menor, alguma violência. Na maioria das vezes, a violência que eles praticam é não-estatal. Ou seja, o herói de quadrinhos tradicional é um fora da lei, mascarado e impelido para combater o mal por razões pessoais, normalmente bastante trágicas. No entanto, apesar de fora da lei, ele age em benefício da lei. Já falamos disso aqui, aqui e aqui, e foi mote de dezenas das melhores sagas em quadrinhos, migrando para diversas mídias, como Batman – O Cavaleiro das Trevas, de 2008.
Mas além de agirem à parte do Estado, nos casos mais célebres e queridos do público, esta “violência não-estatal” se realiza na forma de associações, de sociedades, de grupos colaborativos reunidos para um fim comum. Exemplos não faltam. A Sociedade da Justiça, a Liga da Justiça, o Quarteto Fantástico, os Vingadores, os Titãs, o Authority, e praticamente todos os grupos de heróis que habitam os quadrinhos mainstream.
Com algumas variações, seja por diferente contexto histórico ou versão autoral, poucos grupos têm uma origem que destoa daquela narrada por Brian Michael Bendis em Os Novos Vingadores – Motim (2005). Pouco depois de debelar uma fuga completa de uma prisão repleta de supervilões, o Capitão América tem o seguinte diálogo com o Homem de Ferro:
– Já sabem quantos fugiram ao todo?
– Quarenta e dois e contando.
– Quarenta e dois??
– Quarenta e dois supervilões de volta ao jogo. Mas conseguimos manter quarenta e cinco na ilha.
[…]
– Percebe, Tony? Está vendo onde eu quero chegar?
Era uma situação insanamente perigosa, fora de controle. Que nenhum de nós podia resolver sozinho. Mas em equipe…
…Num grupo reunido por… Pelo quê? Pelo destino.
Existe outra palavra pra isso?
Um grupo de pessoas extraordinárias… gente que nunca pensaria em se juntar na mesma sala.
… disposta a pôr de lado qualquer coisa que tivesse a perder pessoalmente.
Pessoas instintivamente fazendo o que fazem melhor. Não dando descanso à gravidade da luta diante de si.
E justo quando ninguém tinha certeza do rumo que a luta ia tomar… O grupo se reúne. E tudo se acerta.
– Você quer reunir um novo grupo de Vingadores?
– O que estou dizendo é que a nova equipe já se reuniu.
Ora, nada mais óbvio, certo? É natural que os heróis, cientes de que eles podem alcançar melhores resultados, busquem associar-se para enfrentar as ameaças trazidas pelos bandidos, correto? Talvez nem tanto.
Ensinou Alexis de Tocqueville em seu grande relato sobre os Estados Unidos em 1848, a busca por associações corporativas é algo intrinsecamente americano, cultural, um sinal da peculiar vivência republicana daquele país. Como diz Tocqueville,
O habitante dos Estados Unidos aprende desde o berço que ele deve confiar em si mesmo para combater as chagas e desafios da vida; ele é incansável e obstinado na forma que enxerga a autoridade da sociedade e apela ao poder dela apenas quando não pode fazer algo sozinho. […] Se algum obstáculo bloqueia uma via pública impedindo a circulação do tráfego, os vizinhos de imediato formam um grupo deliberativo; esta assembleia improvisada gera uma autoridade executiva que remedia o transtorno antes mesmo de alguém pensar na possibilidade de alguma autoridade previamente instituída para outro fim senão aquele em questão. (TOCQUEVILLE, A. Political Association in The United States In Democracy in America. NY: Harper-Collins, 2000. P.189)
“A essência de [Benjamin] Franklin é que ele era um homem voltado para a sociedade civil.”, apontou o biógrafo Walter Issacson em Benjamin Franklin – Uma vida americana (2015, p. 107). Segundo ele descreve, o cientista/diplomata que estampa a nota de 100 dólares teve como uma das características mais notáveis uma disposição colaborativa incansável, canhestra de início, mas fundamental na carreira política que o levou a ser um dos signatários da declaração de independência americana de 1776. Diz Isaacson, “[…] essa perspectiva gregária o levaria, na década de 1730, quando era um impressor de vinte e poucos anos a usar a Junta [sua companhia gráfica] para criar uma variedade de organizações comunitárias, entre elas uma biblioteca circulante, uma brigada de incêndio e corpos de vigias noturnos. (ISAACSON, Walter, 2015, p. 107.)
“Ok Velho. Associações são beeem americanas. E daí?”, diria você.
Daí que existe uma questão mais delicada no andar de baixo das associações heroicas da ficção. A Liga da Justiça e os Vingadores são, essencialmente, associações paramilitares, uma milícia. Mais poderosos que as forças regulares das nações, eles não respondem a nenhum governo ou autoridade. Ameaças maiores exigem deles uma agilidade de reação que poderes estatais são incapazes de avaliar e de se posicionar de forma adequada. Acima de tudo, os heróis acreditam piamente na honestidade de suas boas intenções, na certeza de que estão fazendo a coisa certa. O problema é: e depois? Quando a ameaça for eliminada, o que devem fazer estes grupos?
“A guerra é quase tão antiga quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano, lugares em que o ego dissolve os propósitos racionais, onde reina o orgulho, onde a emoção é suprema, onde o instinto é rei. ‘O homem é um animal político’, disse Aristóteles. Clausewitz, herdeiro de Aristóteles, disse apenas que um animal político é um animal que guerreia.”, afirmou o historiador britânico John Keegan em Uma História da Guerra (2001, p. 19). Ao tentar responder o que é a guerra, Keegan relembra que a violência humana pode ser “canalizada” por meio das forças armadas regulares, na forma dos “portadores legais de armas”.
A hostilidade e brutalidade, no sentido assinalado por Keegan, dificilmente podem ser “apagadas” pela cultura e urbanidade da civilização. Ao invés disso, elas poderiam ser direcionadas e normatizadas por meio de rituais reservados àqueles que fossem exercer funções ligadas à guerra. Estes rituais, dos mais simples, como o uso de um uniforme por um recruta, aos mais complexos, como o uso proficiente da espada por um samurai, indicam o grau de acomodação que uma sociedade garante a dois tipos humanos opostos: o pacifista militante e o soldado profissional. Enquanto o pacifismo surge como um ideal, o outro é aceito como uma necessidade prática. Como assim?
Distinguiu Keegan:
“O ‘estilo’ era essencial ao modo de vida dos samurais – estilo nos trajes, nas armaduras, nas armas e seu manejo e no comportamento no campo de batalha; nisso não se diferenciavam muito de seus contemporâneos cavalheirescos da França e da Inglaterra. Mas na perspectiva cultural, as diferenças eram enormes. Os japoneses eram um povo letrado e a cultura literária dos samurais era altamente desenvolvida. Os maiores nobres do Japão, aqueles que residiam na corte do imperador-deus sem poder, não lutavam pela reputação militar, mas pela glória literária. O exemplo deles dava o tom para os samurais, que desejavam comumente ser conhecidos como esgrimistas e poetas. O budismo em sua versão zen, adotada pelos samurais, encorajava uma visão meditativa e poética do universo. Os maiores guerreiros do Japão feudal eram, portanto, homens de espírito e sentidos cultivados.” (KEEGAN, 2001, p. 60)
Estas ideias, longe de se esgotar, sugerem caminhos e exigem mais reflexão, especialmente quando contrapostas à nossa realidade. Já que aqui não dá, resta lembrar das vezes em que as milícias dos quadrinhos declararam o encerramento das suas atividades e seus membros aceitaram de bom grado a vida de aposentado, seguiram o estilo japonês, adotando uma visão meditativa e poética do universo. Confesso que nos quadrinhos não lembro de nenhum.
Afinal, que editora arriscaria a acabar com suas histórias?
Uma das várias coisas que me agradou no seu texto foi a citação ao Tocqueville. Me lembro que na minha época de faculdade ele era de fato um autor bem conhecido e mencionado, mas não faltava quem lhe dirigisse críticas pesadas.
Algumas provavelmente eram mais do que justificadas, outras, um tanto injustas a meu ver. Afinal, o contraste entre a tendência associativa dos americanos e a nossa, que ao mesmo tempo em que tende a delegar tudo a poderes superiores busca se fechar em clãs (pra usar o termo de Oliveira Vianna), não podia ser mais gritante.
Por curiosidade, que encarnação da Liga foi essa que incluiu o Arqueiro Verde e o Nuclear ao mesmo tempo?