No Japão o antagonismo pode ter significados diferentes, mas a mesma ideia!
Já escrevemos um artigo sobre kawaii na cultura japonesa, mas completamos aqui com o antagonismo de kawaii, o utsukushii.
No entanto, para entender melhor o utsukushii é necessário uma breve história da estética kawaii. O termo kawaii tem sua origem na palavra kawowayushi ou kawayushi e foi encontrada pela primeira vez na obra Konjaku Monogatari (Narrativas do Passado e do Presente) no século XII. Porém, com o tempo a palavra kawayushi foi perdendo sons, passou para kawayui e depois da Segunda guerra Mundial ganha a forma kawaii, usada desde então. Seu significado também acompanhou essa evolução.
Kawayushi significa sentir vontade de fechar os olhos por estar na presença de uma situação dolorosa, é o sentimento de ter pena; e kawaii representa o modelo de beleza que se constitui de candura, delicadeza, graciosidade, encanto e fragilidade, e que emerge dele estados de lástima, dor e desolação. Mas ambos nos remetem aos sentimentos de piedade, compaixão e ternura.

Kin-san e Gin-san, foram consideradas gêmeas kawaii por completarem 100 anos em 1992. Kin, faleceu em 2000 e Gin em 2001.
Para o autor japonês de ensaios culturais, Yomota Inuhiko, a estética kawaii que aparece no final do período Heian (794 – 1185), era representada pela palavra utsukushii, com o mesmo significado, como encontramos no livro de Sei Shônagon, Makura no Sôshi (O Livro do Travesseiro):
“Coisas que são graciosas (utsukushikii-mono): […] Rosto de criança desenhado em um melão. Pardalzinho que vem saltitando, ao imitarmos guinchos de rato. É muito graciosa a criança de dois, três anos, que engatinha rapidamente e, com vivacidade, descobre um pequeno cisco no chão, pega-o com seus dedos muito encantadores e mostra-o a cada um dos adultos. É graciosa também a menina de cabelo cortado rente aos ombros como o das monjas, que, para ver alguma coisa, inclina o rosto ao invés de afastá-lo quando este lhe cobre os olhos.
[…] Adorno do Dia das Meninas. Apanhar do lago uma minúscula folha flutuante de lótus. Uma folha de malva bem pequena. Tudo, tudo que é pequeno é muito gracioso.
É igualmente gracioso um bebê branquinho e gordinho de cerca de um ano vir engatinhando com as longas mangas amarradas do quimono de transparente roxo-carmesim, ou então andando de quimono curto em que só se veem as mangas. Um menino de oito, nove ou dez anos lendo um texto chinês com sua voz infantil, é muito gracioso. […]”
Essas características do utsukishii nos remetem à sensualidade apresentada nos mangás, principalmente os shôjo mangá. Toda essa graciosidade em inclinar levemente a cabeça, olhar por entre os cabelos, muitas vezes, com a presença do vento, dão sensualidade à cena.

Miyako Maki
Entretanto, na modernidade, utsukushii e kawaii aparecem como estéticas diferentes e com significados distintos. Kawaii, por exemplo, está mais voltado à fragilidade, à necessidade de amparo e proteção, uma postura mais infantil e utsukushii está voltada para a determinação, elegância e uma postura desafiadora.
Segundo Yomota Inuhiko, o antônimo para kawaii não é minikui (feio), e sim, utsukushii, “bonito; lindo; belo; encantador; admirável; puro”. Talvez isso ocorra por utsukushii representar os ideais opostos do kawaii.
O filme Porco Rosso (1992) de Hayao Miyazaki pode exemplificar a distinção entre essas estéticas através das personagens Gina e Fio. Ambas as personagens são determinadas e respeitadas pelo protagonista, Marco Pagot. No entanto, Fio, talvez por ainda ser adolescente, apresenta algumas características que a tornam kawaii, como suas expressões faciais e corporais, suas vestimentas e seu comportamento adolescente.
Gina, dona de um hotel no mar Adriático, fora casada três vezes, e o que ela diz para os pilotos que frequentam seu hotel é ouvido e respeitado, suas expressões e comportamentos são de uma mulher madura e independente, ou seja, ela apresenta características da estética utsukushii. Observa-se, a partir desse ponto de vista, que o respeito dado pelos pilotos a Fio é mais atencioso e cuidadoso, enquanto que em relação a Gina, é um misto de medo e respeito à sua postura séria e equilibrada.
Essas estéticas mostram o quão complexo pode ser a cultura japonesa, que muitas vezes, nem mesmo os japoneses procuram entender, simplesmente o vivem.