Na quinta-feira, dia 12/3, o novo uniforme da Mulher-Maravilha foi divulgado pelos sites especializados em quadrinhos americanos. Mais recatado, o modelo da princesa amazona preza muito mais pela praticidade do que pela exposição do corpo.
Fosse apenas por causa do traje talvez a questão parasse por aí. Não foi.
Uma inesperada polêmica surgiu por conta da divulgação da capa variante de Batgirl #41, desenhada pelo brasileiro Rafael Albuquerque. A capa, uma alusão ao clássico “A Piada Mortal”, traz a heroína ao lado do Coringa e despertou a revolta de vários leitores. A pedido de Albuquerque, a capa foi cancelada.
Os dois episódios estão intimamente ligados e levam a várias questões. Afinal, quadrinhos são espaço de opressão feminina? São fonte de inspiração? Ou de sexismo? Ou de valorização da mulher? Algo tem sido perdido? Ou ganho? Quem são os leitores de quadrinhos de hoje? Quais são os valores desses leitores?
É hora de pensar.
Desde que o reboot do universo DC começou em 2011, havia uma “tendência” editorial a vestir a Mulher-Maravilha, ícone máximo das super-heroínas. Naquele ano, as primeiras imagens de divulgação mostravam Diana vestindo calças invés do tradicional “maiô-tomara-que-caia de batalha”.
Os leitores odiaram. As capas iniciais foram redesenhadas. A versão sem calças é a que prevaleceu até agora. Chegando perto do número 41 da revista da heroína, o novo uniforme deve entrar em vigor.
Lembrando: a rigor, a referência de origem de Diana é de uma amazona da mitologia grega.
No ano passado, a Batgirl e até mesmo a Mulher-Aranha, que enxergamos aqui como uma espécie de cobaia da Marvel, também ganharam outros uniformes. Mas ambas miram na mesma direção: menor sensualidade, maior praticidade. Decotes e colants foram substituídos por jaquetas e calças.
No caso da Batgirl, a revitalização da personagem foi muito além do visual. Na versão pré-reboot do universo DC, Barbara Gordon foi deixada paraplégica e sexualmente violentada pelo Coringa na clássica edição “A Piada Mortal“, de Alan Moore e Brian Boland. Estes eventos jamais são graficamente representados na revista, mas aludidos de forma chocante. A capa de Albuquerque faz referência a este obscuro episódio da personagem, o que ofendeu os fãs e levou ao cancelamento, ressalte-se, a pedido do desenhista.
Em entrevista para o UOL, Albuquerque reconheceu que “a capa trouxe muitas interpretações. No final das contas, não é a capa em si o problema, é a revista onde ela seria publicada. Uma revista voltada para o público feminino adolescente não deve ter uma capa pesada como essa. Indiferente da questão de quem está certo ou errado, a capa que eu fiz não serve a proposta que deveria ter.”
Perguntado sobre se a opinião dos leitores pode tolher a criatividade dos artistas, Albuquerque indicou sua avaliação do mercado e dos leitores. Segundo ele,
“[…] A indústria de maneira geral sempre foi machista. Estamos acostumados com isso e vivemos um momento de abertura dessa indústria. É importante revermos nossos valores e nossas posições. Acho que, independente da postura de cada um, diálogo e respeito é fundamental para que a indústria não se divida. Respeito é minha principal bandeira aqui.“
Considerando que 47% dos leitores de quadrinhos mainstream nos Estados Unidos é formado pelo público feminino, a alteração de uniforme e a polêmica em torno da Batgirl não é exatamente uma surpresa. Ou é?
Em 2013, o desenhista Michael Lee Lunsford fez uma experiência. Criou uniformes anatomicamente realistas ou mais práticos para heroínas tradicionalmente seminuas. O resultado é sem dúvida excelente.
É um consenso entre leitoras que a pouca roupa ou decotes nas heroínas seja sinônimo de sexismo ou ofensivo? Isso compromete as vendas de quadrinhos? Criações como A Piada Mortal, que tocam em itens extremamente delicados, como a violência contra a mulher, devem ser evitados?
A mudança na representação das heroínas e a decisão por cancelar a capa de Batgirl aponta que as editoras acham que sim. E isso é significativo.
Aqui arriscamos uma explicação do porquê.
Diferente das décadas de 40, 50, 60, 70, 80, os quadrinhos produzidos hoje nos Estados Unidos não são concebidos para atender apenas àquele mercado e que era majoritariamente masculino, “machista”, como assinalou Albuquerque. As coisas estão mudando.
Antes a divulgação prévia de capas via online, não existia. A exportação, que atinge um público muito maior do que apenas o americano, era algo até secundário nas prioridades editoriais. Os gêneros de quadrinhos, por exemplo, erótico e de aventura, se misturavam com maior facilidade, vide Conan ou Red Sonja, por exemplo.
Hoje a difusão de quadrinhos no exterior é muito mais ampla, sistematizada, justamente porque as revistas também são compradas online. As marcas/personagens são muito mais conhecidas e não se pode arranhar a imagem de cada uma.
Um público maior significa a necessidade de atender (e agradar) mais pessoas, daí a importância de maior moderação e cuidado em como retratar mulheres, ou tudo aquilo que um “americano médio” podia considerar minoria: mulheres, negros, homossexuais, latinos, islâmicos.
Quem lê quadrinhos sabe vários exemplos de cada um criados recentemente na ponta da língua. Sob o risco da acusação de violar o politicamente correto, todos têm sido representados de uma forma ou de outra nas páginas e com um zelo incomparavelmente maior do que a 30 anos atrás.
Que fique registrado, no caso do uniforme da Mulher-Maravilha ach(o)mos que não houve prejuízo algum, nenhuma supressão ou supervalorização de sensualidade da heroína. Sabe-se lá se a nova versão do uniforme vai perdurar. Outras já vieram e caíram. Mas esse é um passo firme dado pela DC e que, bem ou mal, tem um impacto direto em como as mulheres são representadas na cultura atual.
O caso da capa de Rafael Albuquerque já é um caso muito mais delicado. Talvez, a serviço do respeito, a criatividade do artista tenha sido cerceada, o que parece prejudicial. MAS, o porquê dele ter optado por cancelar a capa, ou seja, por ter ouvido e atendido o desejo do público, parece ter sido uma atitude extremamente sóbria.
Sexo e violência vendem. A exposição sensual de corpos impulsiona vendas. Reprimir a sensualidade implícita que as histórias em quadrinhos carregam talvez seja tão sem sentido quanto achar que o corpo é algo sujo, ruim, e que deve ser encoberto. Veja, as Olimpíadas, de todas as interpretações possíveis, são a celebração estética e erótica do corpo, sendo os atletas os primeiros “sex symbols” da História. Negar a sexualidade projetada nos heróis (nossos mitos olimpianos atuais) é negar a experiência erótica, pessoal e subjetiva que a leitura dos quadrinhos permite, seja ela maior ou menor, seja na idade que for.
Mundo chato esse de hoje…
Assim, por curiosidade, por que exatamente você acha isso?
Ótimo ler do ancião sabendo quem é agora pessoalmente, hehe. Ótimas reflexões críticas!
Opa!
Valeu Maurício!
O espaço está aberto pra vc tb!
Então, a divulgação em massa dos quadrinhos que afeta não só o público consumidor, mas demais pessoas que, vez por outra, recebem este tipo de notícia em seus gadgets eletrônicos, a grande motivação desta mudança dos uniformes das heroínas outrora reconhecidas/acusadas por sua sensualidade/sexismo? É notório que a rede dispersa informação e desinformação, o que gera de opiniões abalizadas sobre determinado assunto e comentários nocivos que se baseiam tão somente na chamada de capa. Uma das questões inerentes a esta revitalização dos super-heróis também se deve à cultura de cada época que, neste caso em específico, tenta conciliar os arroubos de criatividade com uma maneira de contornar os gestores do politicamente correto. Logo, muito disto é adaptado para velhos e novos públicos e muito se perde devido a uma decisão editorial ou pressão de outros departamentos da editora que controlam os personagens. Por ter esta imagética da Mulher Maravilha – para se concentrar em um exemplo de uma super-heroína – de ser uma personagem que une a sensualidade e a luta pela justiça mesmo em trajes sumários, torna-se estranho à primeira vista esta mudança, mas, a partir de um olhar mais aguçado, não muda nada porque se a essência da personagem permanecer no transcorrer das histórias o advento de calças ou um tomara-que-caia será o menor dos problemas. Crescemos com esta idealização da mulher super-heroína e a maturidade nos faz pensar na funcionalidade e na maneira como esta idealização pode ser interpretada por diferentes públicos. O sinal de novos tempos é perceber que estas modificações geram discussões como a que vimos acima e que tem chamado a atenção do grande público para este universo. Com o crescimento do público consumidor feminino, é ótimo que modelos mais direcionados às meninas sejam feitos e outras formas de tratar a feminilidade sem a exigência do apelo sexual como chamariz estejam ao dispor dos fãs de quadrinhos.
André, algo me diz que você é acadêmico… XD
Você disse que “é ótimo que modelos mais direcionados às meninas sejam feitos e outras formas de tratar a feminilidade sem a exigência do apelo sexual como chamariz estejam ao dispor dos fãs de quadrinhos.[…]”
Mas note-se que, ao mesmo tempo, nunca o acesso à pornografia foi tão grande como desde o surgimento da internet civil. A pornografia cresceu bastante. Talvez a sexualização das heroínas seja até desnecessário. Acho que existem dois processos simultâneos aí: uma atenuação da sexualidade das heroínas de quadrinhos e a “hipersexualização” da pornografia.
Sexualidade é um traço natural humano, individualmente e como sociedade, e pra ambos precisa ter um canal de escape. Talvez o que esteja acontecendo é uma compartimentalização dessa sexualidade em espaços mais fechados. Se bom ou ruim, acho difícil afirmar sem sombra de dúvida.
Verdade sobre a questão da sexualização e de como ela é inerente aos conteúdos relativos à grande mídia, por conseguinte ao contexto do universo dos super-heróis – afinal sexo e violência vendem, não importando a forma do produto a ser oferecido no mercado. Se não me falha a memória, este tema da sexualização – ou erotismo – já foi analisado em um texto aqui no Quadrinheiros.
Agora, sobre esta tônica da compartimentalização sexual, pode-se dizer que as editoras têm começado a refratar todo este apelo sexual de uma certa forma, seja censurando capas cujo apelo sexual suba às alturas mas que não apresentem relação direta com o conteúdo interno da revista (vide o caso Milo Manara x Marvel), seja dando poder de criação a autores inovadores que estão crescendo na indústria de quadrinhos a partir de projetos independentes, o que permite que certos personagens sejam retratados de uma outra perspectiva (Miss Marvel de origem muçulmana). Por exemplo, e ainda tendo a Mulher Maravilha como tema de debate, a nova roteirista Rachel Dodson compôs um diálogo em que Diana Prince conversa com uma amiga e diz que optou por usar calças porque queria disfarçar suas “imperfeições” físicas, fato este que vai ao encontro de uma preocupação típica de uma mulher e, portanto, ajuda a criar uma correspondência entre personagens fictícios e reais do outro lado da página.
Certos personagens são reconhecidos pela bravura, pela estratégia de se lidar com a justiça ou por suas características físicas o que pode ofuscar outras qualidades que possam se sobressair no decorrer das histórias. Este é o caso da Mulher Maravilha e de outros super-heroínas, porém isto não se resume aos personagens femininos, já que os corpos masculinos também sofrem desta sexualização, eis o preço da cultura que retrata personagens heroicos no ápice da compleição física.
P.S.: Se for para escolher um “rótulo”, posso dizer que sou um acadêmico diletante que está procurando por um tema forte e interessante o suficiente para retornar às boas graças do mundo acadêmico. Quem sabe se o que estou procurando não poderia vir destas discussões propiciadas pelos textos de todos vocês postados aqui no site? Se sim, deixarei uma menção honrosa para o grupo todo se conseguir alcançar meus objetivos.
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André,
Sempre me pareceu que ter escritoras mulheres à frente dos títulos, como no caso da Rachel Dodson na Mulher-Maravilha, é uma boa alternativa para atenuar uma potencial carga “sexista” nos quadrinhos, exatamente por estarem mais atentas a temas e questões que um homem é ignorante ou insensível, e não por má fé. Mas por outro lado, não acho que apenas uma mulher seja capaz de fazer isso. Seria o mesmo que dizer que histórias sobre o Estrela Polar só podem ser escritas por homossexuais, ou do Luke Cage por negros. É algo para se pensar.
RPS – Nós, deste lado do balcão, ficamos honrados! Mais do que qualquer coisa, esse blog foi criado justamente para debater ideias. Nós que agradecemos sua presença por aqui! =]
Cada dia mais, tenho a percepção de que os Quadrinhos deixaram de ser arte para se tornar comercio. E lamento muito isso. A minha sorte é ter começado a ler nos anos 80.
A arte é a mensagem de um artista, seja ela vendável ou não… hoje, não importa o que o artista pense, ele vi escrever o que o povo quer comprar, e é por isso que sai tanta porcaria.
Mas, até aí… sou eu me tornando um velho ranzinza…
Abraços do Quadrinheiro Véio !
http://oquadrinheiroveio.blogspot.com/
Alan,
aposto um saco de balas Chita de cereja que daqui uns 20 anos vai aparecer algum blogueiro (ou holo-blogueiro, sei lá) que vai dizer que quadrinho bom era o de 2015, obras únicas e inesquecíveis.
Não sei se dá pra “vilanizar” o mercado. Sem ele não haveria nem o refino que nos apresentou aquilo que gostamos. Acho que gibi é como banana de feira. Entre aquele monte de cacho há de se achar o de melhor qualidade.
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