Virgem depois dos 30. O título poderia ser de um besteirol americano qualquer, mas trata de um drama complexo da sociedade japonesa contemporânea.
Bargain Sakuraichi (pseudônimo de Toshifumi Sakurai) possui diversos trabalhos no estilo comédia erótica, tendo ilustrado diversos mangás de reportagens e documentários do setor de entretenimento adulto. Entre eles adaptou o livro Virgens de Meia-Idade (inicialmente um conjunto de artigos para um site japonês, posteriormente reunido na forma de livro e best-seller no Japão) de autoria do escritor freelancer Atsuhiko Nakamura, transformando-o no mangá-documentário Virgem depois dos 30, trazido ao Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, com o excelente trabalho gráfico que já é característico da editora, com tradução de Drik Sada. A obra mostra o drama vivido por oito virgens de meia idade, todos pessoas reais entrevistados pelo autor, divididos em oito capítulos, cada um contando com um apêndice em forma de texto que aprofunda questões abordadas nos respectivos capítulos.
O método de exposição da pesquisa realizada pode causar certa estranheza àqueles não acostumados com o jornalismo em quadrinhos, sendo a obra o primeiro mangá-documentário publicado no Brasil. A arte de Sakuraichi aumenta a carga dramática das histórias por meio de uma dose de comicidade, o que, paradoxalmente, nega qualquer possibilidade de riso por conta do drama humano vivido. A sensação de estranhamento move a leitura e a forma como Nakamura expõe as histórias de vida de cada um dos personagens retratados impossibilita qualquer compaixão, revelando seus defeitos, suas falhas de caráter, mas também as razões de encontrarem-se naquela situação, de maneira que conhecemos a dor de cada um deles em sua singularidade.
Mas a abordagem de Nakamura não se perde no drama humano. O autor mostra de maneira clara como os problemas pessoais de cada um dos virgens de meia-idade ali apresentados ligam-se com os problemas da sociedade e da economia japonesa contemporâneas, com grande ênfase dado ao setor de cuidadoria de idosos (no qual o autor trabalhou por anos, onde teve o primeiro contato com o tema):
O ‘virgem de meia-idade’ é um fenômeno que ganhou evidência nas últimas três décadas, quando homens e mulheres passaram a ter mais liberdade nas relações amorosas, em detrimento dos tradicionais casamentos ‘arranjados’. Como agravante, houve a crise do modelo empregatício japonês e a depreciação do setor secundário da indústria, o que acabou criando uma casta de homens fadada a ser excluída, tanto pela sociedade quanto pelo sexo feminino. (…) Para dar destino a esses trabalhadores ociosos, o governo apressou-se em guiá-los para um setor que sempre sofreu com a falta de recursos humanos, fazendo com que um grande volume de virgens de meia-idade fosse destinado à cuidadoria de idosos (p.49).
Porém o autor teve o cuidado de retratar diversos perfis de virgens de meia-idade. Há casos de virgens de meia-idade com alta escolaridade, altos salários e o mercado de agências de matrimônio voltado a esse público também é abordado no mangá.
Há ainda os que se refugiam na cultura otaku, projetando seus desejos de afeto em personagens bidimensionais:
Independentemente da idade, o fator comum entre todos os otakus que gostam do mundo bidimensional é o culto à virgindade da mulher. O culto à virgindade feminina é o pensamento de quem considera essencial que a mulher se mantenha intocada. Esse pensamento em si já é anormal… e, inevitavelmente, leva esses homens a direcionarem sua afeição para meninas jovens; jovens até demais. As personagens bidimensionais são todas jovens e bonitas, muitas vezes descritas na história como maiores de idade, mas desenhadas de modo a dar a impressão de que têm, no máximo, entre 12 e 14 anos. É por isso que o conteúdo da indústria do entretenimento otaku está repleto de personagens menininhas. (p.115-116).
O problema de mangás e animês com conteúdo erótico com crianças no Japão já gerou um pedido da ONU para que esse tipo de conteúdo fosse banido no Japão. E, oportuno lembrar, Nobuhiro Watsuki, autor de Rurouni Kenshin (também conhecido como Samurai X) foi detido pela posse de pornografia infantil e sua pena foi uma multa de 200 mil ienes (hoje algo em torno de 7.500 reais).
O perfil dos virgens de meia-idade que encontram na internet um local para expressar suas frustrações também é abordado sob o perfil de um nettouyo, ‘termo utilizado no Japão para pessoas que usam as redes sociais e os fóruns da internet de maneira anônima para manifestar opiniões e posturas de extrema direita, conservadoras e ultranacionalistas’ (p. 75).
Os nomes dos homens que têm suas vidas retratadas são todos trocados por nomes fictícios, à exceção de um: Ichiro Suzuka, um ator pornô virgem, um homem cujo objetivo na vida era tornar-se famoso, com a história mais trágica de todas, o que revela um pouco da indústria pornográfica japonesa, tema já trabalhado em outros livros do autor.
Sob os mais variados perfis e contextos, partindo do caricato para alcançar o realismo, é na tensão entre os dramas pessoais, nas expressões sociais e econômicas que operam juntas numa identidade social soterrada por estigmas novos e antigos, a obra mostra sua relevância, dando visibilidade ao problema de maneira explícita. É jornalismo em quadrinhos, conferindo uma janela para o invisível e o impensável.
Claro que cada caso é um caso, mas como eu mesmo perdi a virgindade muito mais tarde que a maioria das pessoas, tendo a pensar que geralmente a vergonha está acima de quaisquer fatores econômicos – e os exemplos que você mesmo menciona, de virgens com altos salários, só reforça essa minha percepção.
Acho que o que predomina – novamente, na maioria dos casos -, é um sentimento de inadequação mais generalizado, que frequentemente leva um indivíduo a querer se colocar fora de qualquer possibilidade de ser ridicularizado.
Se isso é mais comum na sociedade japonesa, me parece que tem mais a ver com o fato de que por lá a honra é levada muito mais a sério do que na maioria dos lugares (daí também o porquê das altas taxas de suicídio, não é?).
Esse texto veio em ótima hora pra mim. Não pude deixar de pensar nessas coisas depois de ter ouvido uma entrevista com o psicólogo Joseph Burgo, que escreveu recentemente um livro – Shame – que fala justamente de diferentes estratégias que as pessoas adotam pra lidar com a vergonha.
Então, Henrí, veja que até no caso dos virgens de altos salários existe toda uma indústria de agências de casamento que atua também. Seria melhor não hierarquizar as causas e pensar em como a questão pessoal/psicológica está imbricada na socioeconômica e vice-versa, eu acho. Vou procurar o livro que vc citou. Abraço.
Realmente, as circunstâncias psicológicas e sociais (e outras mais, que nem abordamos aqui) se mesclam. Não li o livro do Burgo, mas a entrevista que ouvi achei muito boa.
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