Quando éramos crianças isso tinha outro nome.
“Protegido” pela interface da tela, “seguro” pela distância física ou pelo “anonimato digital”, o fã da mídia nerdpop pode ser um animal cruel. Exemplo mais recente é a enxurrada de críticas ao novo filme da Capitã Marvel que, se registre nos autos, nem mesmo estreou.
Os vitupérios que defende o fã descontente revela o estágio dos sentimentos dele, perfeitamente descritos pelo autor Sam Sykes:
- eu amo isso
- eu sou dono disso
- eu controlo isso
- eu não tenho controle sobre isso
- eu odeio isso
- eu devo destruir isso
Tóxico para o meio, despótico contra quem desvia da visão dele, o fã raivoso exila pares e a si mesmo do diálogo e, pior, se priva de novas histórias.
Mas nem tudo está perdido. Há quem busque alternativas. Caminhos diferentes. Soluções para cada obstáculo que a narração “oficial” parece impor. Quando éramos crianças, isso era chamado de “brincar”.
Crescidos, dotados de mais experiência, refinamento, recursos e até bom gosto, demos à brincadeira vários nomes. Cosplay. RPG. Diorama de action figure. Mas de todos, por suas características, com os resultados potencialmente mais amplos é o fanfic, a ficção de fã para fã.
Antes que você possa torcer o nariz, vale lembrar que o fanfic consegue quebrar os galhos que nenhum conglomerado de mídia jamais teria coragem de apostar seus valiosos milhões. Discorda?
Para vocês, vultos de memória curta, em verdade vos digo: antes de Christopher Nolan, Bat-Bale e Oscar pro Heath Ledger como Coringa veio o curta Batman: Dead End, de Sandy Colora, de 2003 Improvisadasso, transbordando paixão pelos personagens, joga Batman, Coringa e o Predador na mesma encrenca. O resultado parece a gramatura do que se tornou Batman Begins, de 2005.
Dependendo da franquia, exemplos de investidas inovadoras não faltam. É o caso de Star Trek, que tem dezenas de curtas e até longas histórias inspiradas no universo criado por Gene Roddenberry. Entre as iniciativas mais notáveis foi Axanar, uma empreitada tão bem conduzida que foi devidamente processada pela CBS/Paramount em 2017, detentora dos direitos da franquia. De todo o esforço, há vestígios online aqui e ali, como o prelúdio, com a presença de atores da própria franquia:
Além das homenagens há aqueles fanfics que vão mais a fundo, com mais cuidado e carinho nas narrativas que jamais ousamos adentrar. E o que é mais vantajoso, uma total indiferença com licenciamento de produtos, orçamento e lucro na venda de ingressos, o que garante a seleção dos melhores ângulos para se contar aquilo que as histórias têm de mais rico.
Ótimo exemplo, escrutínio de entre-histórias nas entrelinhas de Star Wars, Shards of the Past é um passo adiante das melhores histórias não contadas nos filmes da saga criada George Lucas.
E por que surgem essas histórias? Não só porque diversão pura, o fanfic atende níveis diferentes da nossa experiência como leitores/espectadores. Por um lado, as fanfics nos permitem “participar” da construção narrativa.
Por outro, as fanfics ajudam a resolver impasses que as próprias histórias acabam impondo. O passar do tempo, o avanço nas idades de atores, contradições nos discursos entre um capítulo e outro, tudo vira matéria-prima na paixão do autor de fanfic.

Digam o que quiserem, pra mim Rogue One foi um fanfic que deu certo.
Por que Obi-Wan Kenobi parece ter envelhecido tanto após meros 19 anos entre o final do Episódio III e o início do Episódio IV? Diz a fanfic, é simples: a Força “drenou” Obi-Wan, assim como aconteceu com Luke Skywalker no seu último duelo com Kylo Ren.
E se nem assim você se convence do valor de fanfic, fica a lição de produtor esperto: na fanfic e devoção dos fãs mais criativos estão as sementes das passagens mais memoráveis, dando aquela força que o autor não sabia que precisava.
E pra você, qual é a história que gostaria de ver contada? E, talvez mais importante, como você a contaria?