Uma das experiências gráficas mais interessantes da Marvel nos últimos anos, a série do Gavião Arqueiro escrita por Matt Fraction (autor de Sex Criminals) e desenhada por David Aja, é tudo menos convencional.
Já falamos aqui no blog sobre a narrativa dessa série, mas a arte é, sem dúvida, o ponto alto da publicação. O canal Strip Panel Naked fez uma ótima análise de uma das páginas de Aja (que eu comento na sequência). Uma das características que mais salta aos olhos na forma com Aja conduz a narrativa é a quantidade de quadros que ele compacta em uma única página.
Numa história em quadrinhos a ação que acontece entre um quadro e outro e que, portanto, não é desenhada. Pode ser uma mudança de posição (como um personagem que num quadro está de pé e no outro está agachado), ou uma mudança de cenário (como uma conversa ao telefone em um quadro e o encontro para jantar no outro). Aja opta por mostrar alguns momentos da narrativa em vários quadros. Isso significa que ele mostra a história avançando quase segundo a segundo.
Em cenas de ação isso é como o efeito de câmera lenta dos filmes. Mas nos quadrinhos cada cena desenhada tem um significado para a narrativa e por isso o trabalho de David Aja vai muito além do efeito especial dramático. No caso da sequência acima, a reflexão do Gavião Arqueiro sobre quem treinou o atirador de facas é representada graficamente no segundo (e silencioso) quadro que mostra as facas voando em direção ao alvo.
Nesta cena Aja faz isso com um diálogo (escrito por Matt Fraction). São 24 quadros em uma única página, a maioria deles mostrando o rosto dos personagens com pequenas diferenças de expressão e proximidade. Na conversa, Clint Barton está tentando explicar para Kate Bishop porque ele quer que ela se junte a ele em sua missão heroica. Na troca entre os personagens fica óbvia a dificuldade de Barton em se comunicar de forma direta e clara. Ele finalmente consegue expor suas inseguranças e preocupações, Kate se sente próxima dele e aceita o convite, Clint se fecha mais uma vez e o telefonema termina um pouco sem jeito. Como representar graficamente todas essas emoções numa única página? As decisões de Aja para essa tarefa são muito engenhosas.
Primeiro a estrutura geral. O fluxo do diálogo acontece na diagonal (do canto superior direito ao canto inferior esquerdo da página), espelhando a figura de Clint (de pé, mais formal, segurando uma caneta como se estivesse em um telefonema de trabalho, usando um telefone analógico que indica a sua idade, e marcado com cores frias), e a figura de Kate (de pijamas, no seu quarto que pode ser entendido como sua zona de conforto emocional, falando ao celular, em cores mais quentes).
Depois a proximidade cadenciada dos rostos dos dois heróis. Clint está quase sempre mais distante que Kate no enquadramento do diálogo. Nos três quadros no centro da página ele se expõe emocionalmente (que é o ponto alto da conversa entre os dois), e por isso seu rosto aparece tão próximo, seu olhos fixados no nada como se ele estivesse olhando pra dentro de si mesmo. Mas no próximo quadro ele se fecha mais uma vez, se afastando graficamente do público (e de Kate). Ela ainda se mantém mais próxima, mas nos três quadros finais do diálogo os dois estão igualmente afastados emocionalmente (ou passam a ter pesos iguais na relação). Um diálogo é sempre um duelo de protagonismo em oposição à escuta passiva, de humor ácido em oposição à fragilidade sincera. É esse jogo de forças que os quadros da página vão cadenciando.
É interessante pensar que com o roteiro de Fraction nas mãos, Aja poderia ter seguido por muitos caminhos diferentes, mas usando recursos simples de enquadramento, cor, simetria e espelhamento, ele constrói uma página de diálogo que revela as emoções, inseguranças, desejos, semelhanças e diferenças dos personagens, potencializando as palavras do escritor.
A simplicidade na narrativa gráfica, quando trabalhada de forma consciente e cirúrgica, pode subverter o gênero e criar páginas como essa de puro talento.