Star Trek: Discovery e o problema da educação do século 19 ao 23

Como a educação vulcana nos ajuda a entender os desafios da formação humana no século 21.

Star Trek: Discovery marca a entrada de Star Trek para a Era da televisão serializada, dentro dos moldes do que é comumente denominado “megafilme”. É uma só grande história sendo contada ao longo de toda uma temporada (ou toda a série), diferente dos episódios fechados em si mesmos, mais comuns nas outras séries de Star Trek. No entanto, não é só por isso que ela se diferencia das demais, mas por estar em conflito com os princípios de Gene Roddenberry, pai da franquia.

O universo de Star Trek é uma das raras ficções científicas em que o futuro não é distópico, mas, ao contrário, uma utopia onde os ideais do Iluminismo foram alcançados, não só para a Humanidade, mas para todos os planetas da Federação. Além disso, em plena Guerra Fria e na efervescência da luta pelos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos, ver na ponte de comando humanos das mais variadas nacionalidades e etnias juntos com outras raças alienígenas explorando o espaço transmitia uma ideia clara e objetiva de como seríamos quando superássemos nossos problemas.

Tripulação da série clássica

Mas Star Trek: Discovery parece ir na contramão dos ideais propostos por Roddenberry e colocar o universo Star Trek mais próximo dos futuros distópicos.

No primeiro episódio da série conhecemos a capitã da USS Shenzou, Philippa Georgiou, e sua primeira oficial e pupila Michael Burnham – a primeira amotinada da Frota Estelar. Nele também é mostrado o motivo do início da guerra entre a Federação e os klingons.

Georgiou e Burnham

É a curiosidade de Burnham que a faz investigar o objeto desconhecido que se revela uma nave klingon – curiosidade que sobrepuja a prudência com a condescendência da capitã Georgiou.

Sob o risco do ataque Klingon, Burnham pede ajuda ao seu pai adotivo, Sarek (pai de Spock), conhecido até então pelo seu pacifismo. No entanto, ele a aconselha a atirar na nave klingon antes que ela ataque, para assim conquistar algum respeito de seus inimigos. Mas Giorgiou recusa-se e Burnham, que não consegue convencê-la, sem reconhecer outra alternativa, aponta uma arma para sua própria capitã.

O plano falha, mas ainda há uma última esperança. Caso capturem T’Kuvma, o líder de uma facção radical dos klingons, existe a possibilidade da negociação. Mas os klingons matam a capitã Georgiou e num impulso de fúria, Burnham mata T’Kuvma, impedindo qualquer chance de paz. A guerra entre os klingons e a Federação tem ali seu início.

O evidente descontrole emocional de Burnham fica mais intrigante uma vez que ficamos sabendo que ela é a primeira humana a ser admitida na Academia de Ciências de Vulcano, fato que foi inspirado na experiência de Ruby Bridges, a primeira criança negra a estudar numa escola somente para brancos nos Estados Unidos nos anos 60. Mesmo com essa grande e nobre inspiração, a personagem e seu histórico merecem ser problematizados.

Os vulcanos são uma raça que experimenta emoções num nível muito intenso e isso era um problema para a sociedade vulcana. Para solucionar esse problema, Surak, um filósofo vulcano, iniciou um movimento voltado para a Razão e para Lógica, desenvolvendo um voto e uma série de técnicas para a supressão de emoções. O movimento de Surak tornou-se majoritário em Vulcano.

As cenas de Spock (no reboot da franquia no cinema) e de Burnham (na série) não deixam dúvida do quão tirânicos são os métodos empregados na aprendizagem dos alunos vulcanos e, ao que parece, somente uma educação vulcana garante a possibilidade na entrada na Academia.

A educação vulcana lembra muito os métodos de aprendizagem da Escola Tradicional, onde os alunos são levados ao acúmulo de conhecimento por meio da memorização de informações. A crítica a esse modelo de educação nasceu praticamente junto com ele, mas, num mundo pré-internet, onde o acesso à informação era escasso,  a memorização dessas informações fazia algum sentido. Fazia sentido na época em que Rodenberry desenvolveu a série, fazia sentido até na época da exibição da Nova Geração. Não faz nenhum sentido hoje, em 2017.

Além disso, nossa visão de que uma mente disciplinada é aquela que suprime os impulsos básicos por algo maior já está na própria ideia de humanização e civilização. Somos humanos porque sublimamos os impulsos animais na civilização. Dito de outra forma, nossos instintos estão institucionalizados e os vulcanos, devotos à lógica e sua Academia, parecem mostrar o melhor que uma educação pode oferecer. Pelo menos ao senso comum.

Uma das tendências da pedagogia no século 21 é a valorização das competências socioemocionais, que nada mais são do que as habilidades que se tem para lidar com as próprias emoções e com as dos outros, se relacionar com os outros, autoconhecimento, trabalho em equipe, tomada de decisões responsáveis e conscientes, entre outras coisas. Exatamente as habilidades que Burnham parece não ter.

Além disso, várias pesquisas indicam a efetividade da aprendizagem por pares. Professores sofrem muitas vezes da “maldição do conhecimento”, pois alcançaram (ou deveriam ter alcançado) um alto nível de proficiência no campo em que lecionam e muitas vezes esquecem ou negligenciam as dificuldades de alguém que é iniciante no assunto. Mas uma pessoa que também está iniciando a aprendizagem conhece melhor as dificuldades do iniciante. Por isso a aprendizagem por pares (guiadas por um educador, que fique bem claro) mostra-se tão efetiva.

Mas para que ela seja efetiva, também é necessário que os pares tenham as competências socioemocionais desenvolvidas, pois o aprendizado vai se dar na vida de mão dupla da comunicação entre os pares e não como no modelo professoral onde o professor discursa sobre um tema, esperando que seus alunos o compreendam, modelo que parece ser  o adotado na educação vulcana. No Centro de Educação Vulcana, vemos os alunos isolados sendo obrigados a repetirem informações enquanto são supervisionados por seus professores.

Burnham ainda criança no Centro de Educação de Vulcano

É por não saber lidar com a negativa da capitã Georgiou em atirar primeiro na nave klingon que Burnham decide amotinar-se. É o descontrole emocional de Burnham diante do assassinato de Georgiou que faz com que ela mate T’Kuvma e dê início à guerra.

Mas mesmo assim o capitão Lorca, da USS Discovery, julga que Burnham pode ser útil na pesquisa científica desenvolvida à bordo de sua nave – pesquisa com fins pacíficos que acabou tendo uma utilização bélica sem muitos escrúpulos. O critério técnico sobrepõe-se ao critério moral e ético. Burnham colocou a si mesma e a tripulação de sua nave em perigo, levou a Federação à guerra, mas ela é tecnicamente capaz.

Lorca e Burnham

Como contraponto, podemos dizer que Spock demonstra uma maior proficiência em competências e habilidades socioemocionais. Mais que isso. Sua perspectiva técnica científica sempre é eticamente balizada. Alguns exemplos.

Em momentos críticos, homens veem exatamente o que querem ver.

Star Trek,  S3E09 (“The Tholian Web,” 1968)

Depois de um tempo, você pode achar que possuir não é tão agradável quanto querer. Isso não é lógico, mas muitas vezes é verdadeiro.

Star Trek, S02E01 (“Amok Time,” 1968)

Essas duas frases demonstram o quão bem Spock conhecia a natureza humana, apesar de sua educação vulcana. Era por isso que ele era um importante elemento na tripulação da Enterprise e não propriamente por conta de seu conhecimento técnico-científico (embora isso sem dúvida nenhuma fosse necessário).

Valorizar a competência técnico-científica desvinculada da ética é uma mensagem perigosa. Já vimos tudo isso em Auschwitz. Pesquisas levadas à cabo sem nenhuma ética, a valorização da técnica acima de tudo. Infelizmente a mensagem da Discovery é clara. E ela parece estar em total desacordo com os ideais propostos por Roddenberry.

Sobre Nerdbully

AKA Bruno Andreotti; Historiador e Mestre do Zen Nerdismo
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10 respostas para Star Trek: Discovery e o problema da educação do século 19 ao 23

  1. Jorge disse:

    Nossa, normalmente os textos dos quadrinheiros são ótimos, mas esse está primoroso, a comparação entre as personagens muito bem colocada, as referências históricas e da cultura pop. Só posso dizer parabéns e que aguardo o próximo.

  2. Olavo Lima disse:

    a educação vulcana apresentada em discovery é completamente diferente da apresentada anteriormente, até mesmo a raça e cultura vulcanas foram modificadas, os vulcanos já não são mais lógicos e pacíficos como eram depois de encontrar os verdadeiros ensinamentos de surak, acredito que pelo fato de serem uma das poucas raças marcantes que eram religiosas a nova serie tentou atribuir diversos aspectos negativos a ela, Discovery tem diversos furos, mas o pior deles é não respeitar o que veio antes dela, apesar de se dizer no prime verse (universo original)

  3. Luziete disse:

    Excelente análise! Parabéns!

  4. Ygor disse:

    Ela tem as qualidades de trabalho. Ela se amotinou por entender o perigo melhor que os outros. A educação não se baseia apenas em memorização de informação, isso não seria lógio. Tirana não, educação inteligentimente rigorosa.
    E os vulcanos ficaram orgulhosos, e por isso xenofóbicos; esta parte da educação é mais coloquial (não sistematizam a xenofobia oficialmente, é mais subjetivo).

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