Com a estreia de Star Trek: Picard o debate nas redes sociais já caiu na reclamação de que a série tem um tom político. Haja saco pra aguentar os “fãs”!
Pra quem está por fora, a franquia Star Trek tem passado por uma renovação nos últimos dez anos. Os três filmes (quando não dirigidos, produzidos por J. J. Abrams a partir de 2009) que estabeleceram uma nova linha temporal – a Kelvin – abriram possibilidades para novas séries em plataformas de streaming. Depois da bastante criticada Star Trek: Discovery (Netflix), que se passa alguns anos antes da série Star Trek Clássica dos anos 1960 (com o Capitão Kirk, Spock, etc), agora é a vez de Star Trek: Picard. A nova série conversa com os personagens e as narrativas que foram estabelecidas na série Star Trek: A Nova Geração, dos anos 1980-90. O personagem principal é Jean-Luc Picard (vivido pelo ator Patrick Stewart), capitão da Enterprise, que volta agora como almirante reformado da Frota Estelar, assombrado pelos acontecimentos que o fizeram abandonar seu posto.
O contexto que explica a insatisfação de Picard com as decisões da Frota está na minissérie em quadrinhos da IDW – Picard: Countdown. As três edições (publicadas ente novembro de 2019 e janeiro de 2020) narram o que aconteceu nos anos 2385 e 2386, quando o almirante Jean-Luc Picard, à bordo da USS Verity, liderava o esforço para evacuar bilhões de romulanos de suas colônias num sistema solar em colapso
Mas os romulanos, apesar de precisarem da ajuda, não confiam na Federação e omitem muitas informações sobre as colônias. Nos quadrinhos, o almirante Picard descobre um povo nativo em uma das colônias, que são usados como mão de obra pelos romulanos. Eles não haviam sido considerados no plano de evacuação porque os romulanos não revelaram sua existência para a Federação por considerá-los dispensáveis. A indignação de Picard diante disso o leva a prisão durante sua visita à colônia. A governadora romulana da colônia foge para a nave de Picard quando uma revolta dos nativos irrompe, tomando a força o comando da USS Verity.

Os romulanos Laris e Zhaban resgatados por Picard nos quadrinhos da IDW voltam na série.
No desfecho do Countdown, Picard é ajudado por um casal de agentes da polícia secreta dos romulanos (os Tal Shiar), Laris e Zhaban. A tripulação da USS Verity consegue neutralizar os romulanos que tomaram a nave e Picard volta à ponte de comando. Alguns blefes e demonstrações de força entre os Tal Shiar e membros do Senado romulano e por fim a evacuação dos colonos e dos nativos começa. A última cena mostra Jean Luc conversando com o comandante La Forge (personagem de A Nova Geração) para saber como andam os trabalhos de construção da frota de resgate dos romulanos. A base de operações desse empreendimento é o planeta Marte.
Logo no início do primeiro episódio da nova série de TV (que se passa em 2399), acompanhamos Picard aposentado e deprimido, tendo sonhos estranhos com seu amigo Data (personagem que morreu para salvar Jean-Luc no filme Star Trek: Nêmesis, de 2002). O lendário membro da Federação dos Planetas Unidos aceita dar uma entrevista que foi solicitada com o pretexto do aniversário da explosão da supernova. Picard deixa claro antes da entrevista que não vai responder perguntas sobre o motivo de sua saída da Frota Estelar, mas obviamente a jornalista dá um jeito de colocá-lo contra a parede.
A entrevistadora menciona a sabotagem que os seres sintéticos fizeram em Marte, que levou à destruição das fábricas de naves naquele planeta, e ao banimento do desenvolvimento de vida sintética. Picard encerra a entrevista de forma abrupta dizendo que ele abandonou a Frota Estelar porque ela não mais representava o ideal original da Frota Estelar. Com o que ficamos sabendo em Countdown fica claro que a Federação desistiu do resgate dos romulanos depois da sabotagem em Marte e que o resgate (Picard cita Dunkirk como paralelo histórico, ou seja, algum resgate foi feito com naves civis) foi parcial. Os cruzamentos entre os romulanos sobreviventes, os borg e a vida sintética são o fio condutor da trama de série.
Mas sem avançar mais na trama da série, o ponto é que os “fãs” nos Estados Unidos inundaram as redes sociais de críticas. Reclamaram do tipo de tecnologia que (na opinião deles) não está adequada quando se considera a linha do tempo da série dentro da cronologia geral da franquia. Se indignaram até por verem na tela um Picard envelhecido e deprimido (sem entender que isso é um elemento central do início da história). Quase nada foi poupado. Mas o comentário mais insistente girou em torno do tom político da série, dando a entender que os roteiristas são todos democratas / socialistas / SJW (Social Justice Warriors) que querem colocar ideologia política em tudo.
Num cenário tão complexo como é o da franquia Star Trek, com diferentes raças com diferentes visões de mundo (que ora tentam estabelecer pontos em comum para uma convivência mutuamente benéfica, ora tentam se sobrepor e dominar outras raças e territórios), não existe a possibilidade das histórias não serem políticas. A impressão que fica é que os tais “fãs” (na sua maioria homens entre 30 a 50 anos) descobriram recentemente (para sua mais profunda frustração) que tudo que envolve a convivência entre seres humanos (e Star Trek é uma metáfora disso) é política.
Na infância de muitos desses fãs, vivida num mundo com muito menos debate acessível (hoje é impossível escapar das problematizações e análises graças às redes sociais), as aventuras da USS Enterprise por lugares onde nenhum homem jamais esteve eram apenas um tempo de fantasia e escapismo. Depois que ficamos adultos não tem como voltar no tempo.
Talvez seja melhor pra esse público buscar narrativas com cenários mais simples, estruturadas em relações entre personagens mais estereotipados, sem profundidade. Ou então aceitar o fato de que não somos mais crianças. Mas, pensando melhor, se os “fãs” acusam os roteiristas de politizar as histórias, transferindo a responsabilidade para o outro de algo que é intrínseco ao espectador, a solução só pode ser mesmo a terapia.
Caro Psíquico…
Como sempre, texto excelente!
Eu gostaria de acrescentar alguma coisa, se me permite. Em primeiro lugar, não acredito que todos os fãs de Star Trek sejam iguais e pensem do mesmo jeito. Os que estão reclamando, talvez não sejam os fãs mais antigos. Aqueles que conhecem a saga em suas premissas originais. Star Trek (e eu sou da época em que a chamávamos de Jornada nas Estrelas) sempre foi política. A Nova Geração explorou a política em sua totalidade. Deep Space Nine não poderia ser mais política. Star Trek sempre cutucou as feridas do seu tempo. Continua fazendo isso. E com muita qualidade. Vida Longa e Próspera!
Sem dúvida Cid, os “fãs” tóxicos são uma minoria. O problema é que eles são muito ativos nas redes sociais e infestam os fóruns e as postagens com comentários e críticas sem sentido. Valeu pelo comentário! Abs!
“Fã” de Star Trek reclamando do tom político da série não assistiu Star Trek direito. Vão se catar bando de babaca.