Walter Benjamin e os anjos de Neil Gaiman

Numa entrevista para o The Comics Journal de janeiro de 1993, Neil Gaiman responde porque os escritores ingleses renovaram os quadrinhos do mainstream americano. Ele argumenta que os roteiristas americanos cresceram lendo quadrinhos, e que isso já acontecia a algumas gerações. Os ingleses cresceram com literatura europeia canônica. A invasão bretã trouxe o frescor da tradição literária e mudou definitivamente o gênero.

De Homero á tradição oral judaica, dos Evangelhos a Kafka e Asimov, contar e recontar histórias é parte essencial da experiência humana. Para Walter Benjamin (um dos mais importantes intelectuais da primeira metade do século XX), olhar os fragmentos da história e juntá-los anarquicamente nos permite ver o que estava oculto. Só o presente  é capaz de despertar significados adormecidos.

Em SANDMAN 22 (parte do arco Estação das Brumas), Lúcifer decide expulsar todos os demônios e as almas do inferno. Fecha todas as passagens e entrega ao senhor dos sonhos a chave da única porta que resta.

Antes da sua segunda queda, Lúcifer Estrela da Manhã pede para que Morpheus corte suas asas. Em seguida ele aparece numa praia na Austrália onde tem uma conversa com um Jó moderno.

De posse da chave, o senhor dos sonhos passa a ser o responsável pelo inferno e por decidir quem deve ficar com esse território. Vários representantes de religiões antigas aparecem para presentear Morpheus em troca da chave, enquanto Remiel e Duma, dois anjos do paraíso, observam tudo.

No fim os dois anjos são escolhidos por Deus para serem os novos administradores do inferno, mas para isso tem que “cair”, não podem nunca mais voltar ao paraíso. É o fim do bem contra o mal. A administração do inferno passa a ser oficialmente feita pelo paraíso, e a punição passa a ter uma função educativa.

Essa mudança política que faz com que o inferno deixe de ser um território livre, e passe a ser um campo de correção. Essa mediação feita na terra do sonho. O desejo secreto de Lúcifer de arruinar Morpheus ao entregar-lhe a chave do inferno. Isso é literatura de alta qualidade, isso olha pra trás e recria o passado, como só o presente pode fazer.

Walter Benjamin também usa a imagem de um anjo numa analogia a marcha do progresso. Diz ele que o anjo da história tem o rosto dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.

O anjo de Benjamin vive o presente, entre o passado que ele não pode mudar, e o futuro que ele não vê. O progresso o impele sempre pra frente, e mesmo que ele não saiba pra onde esta indo, o que o guia são as ruínas que se amontoam na sua frente. Essa é também a tragetória de Morpheus que é  o senhor do reino do sonhar.  Benjamin diz – “Uma época sonha a seguinte, e ao sonhá-la, força-a a despertar”.

Todo SANDMAN é permeado por referencias históricas, filosóficas, literárias. As camadas são muitas e só a leitura e releitura podem desvendar. Por isso é um canonê moderno. Poucas obras literárias tem esse grau de complexidade  e essa capacidade de nos atingir em vários níveis.

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*Para mais histórias de anjos de Neil Gaiman a dica é Mistérios Divinos (Murder Misteries)

* Se um dia eu tiver uma banda vou usar o título desse post como nome 😉

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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7 respostas para Walter Benjamin e os anjos de Neil Gaiman

  1. Me diz seu nome aí pra eu te pedir em casamento

  2. xavisxavier disse:

    Reblogged this on Xavis Own Experiencee comentado:
    Ótimo Post voltado à Sandman!

  3. Pingback: Guerra dos Roteiristas E06 – Alan Moore X Neil Gaiman | Quadrinheiros

  4. Pingback: 10 (+5) referências de histórias em quadrinhos | Quadrinheiros

  5. maxoel disse:

    Belo texto. Gostaria de fazer um complemento.

    Na minha interpretação, na visão de Gaiman a punição no Inferno sempre teve função educativa e ser um campo de correção sempre foi o propósito divino:
    “Este é o Inferno, Tim. Este é um lugar de castigo, Timothy. Aqueles que crêem que devem expiar impõe este lugar e suas torturas a si próprios… Até que entendam. Até que percebam que eles, e apenas eles… Não deuses ou demônios… São quem criam o Inferno; e assim são libertos, e podem partir”. (Livros da Magia).

    Em Estação das Brumas, o próprio Verbo explica que “o Inferno é o reflexo do Paraíso. É a sombra do Paraíso. Ambos se definem. Recompensa e castigo, esperança é desespero. Deve haver um Inferno, pois sem Inferno o Paraíso não tem sentido”.

    Morpheus complementa mais tarde:
    “Eu não criei o Inferno de Lúcifer, nem o Reino do qual ele se faz sombra. Se seu CRIADOR o deseja de volta, a prerrogativa é dele”.

    A citação de Mistérios Divinos é oportuna, já que fica implícito que a rebelião e a queda, assim como a existência do inferno, faziam parte da vontade de Deus.

  6. Pingback: 10 anos de Quadrinheiros – como era o mundo (dos quadrinhos) em 2012? | Quadrinheiros

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