O selo Milestone: representação e violência racial

milestone comics quadrinhos

Uma breve história do selo Milestone e da representação e violência racial nos Estados Unidos. 

Em abril de 1992, depois do juri absolver quatro policiais da acusação de uso de força excessiva contra Rodney King, as ruas de Los Angeles foram tomadas por 6 dias pela ira da população negra. A ação dos policiais que espancaram Rodney King havia sido filmada e transmitida ao vivo pela televisão. A decisão do juri despertou a revolta contra a injustiça histórica das relações raciais nos Estado Unidos, com o trágico saldo de 63 mortos, mais de duas mil pessoas hospitalizadas e doze mil pessoas presas. Um ano depois da Revolta de Los Angeles começava a publicação dos títulos de um novo selo de histórias em quadrinhos com super-heróis negros: a Milestone Media.

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Idealizada pelos escritores e ilustradores negros Dwayne McDuffie, Denys CowanMichael Davis e Derek Dingle (na foto, da esquerda para a direirta), a Milestone Media havia sido apresentada na San Diego Comic-Con pelo executivo da DC Comics Paul Levitz, em agosto de 1992. Com a preocupação de aumentar a representação de pessoas negras nas histórias de super-heróis, os títulos introduziram personagens como Icon (Augustus Freeman), Rocket (Raquel Ervin), Hardware (Curtis Metcalfe) Static Shock (Virgil Hawkins, em português conhecido como Super Choque), entre outros. Todos habitavam um mesmo universo, mas não estavam dentro do universo principal da editora. 

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Essa primeira leva de histórias acabou em 1997 quando os últimos títulos que haviam sobrevivido a cancelamentos foram descontinuados. Um ano antes, um policial branco havia parado um motorista negro na cidade St. Petesburg, no estado da Flórida. O motorista, TyRon Lewis, de 18 anos, desarmado, saiu do carro obedecendo as ordens do policial que em seguida o matou com 3 tiros. Testemunhas disseram que o policial e sua parceira alteraram a cena do crime para justificar a ação. Os tumultos começaram assim que outros policiais começaram as investigações do caso. Mais de 20 pessoas foram presas. Meses depois o juri decidiu que os policiais eram inocentes e uma nova onda de revolta da população negra tomou as ruas, com saldo de dezenas de prisões e hospitalizações.

Em 2000, uma animação do Super Choque estreou na TV e teve 52 episódios (foi ao ar até 2004). Nessa mesma época, na cidade de Cincinnati, no estado de Ohio, o jovem de 19 anos Timothy Thomas, desarmado, foi perseguido à pé por policiais e levou um tiro no peito, por não “obedecer a ordem de parar”. O caso aconteceu depois de 13 “incidentes” parecidos se repetirem sempre numa mesma região da cidade. O tumulto que se seguiu durou 4 noites. No enterro de Timothy Thomas, um protesto pacífico foi dispersado por balas de borracha que feriram crianças e idosos que seguiam o cortejo. 

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Em 2008 o editor da DC Comics, Dan Didio, anunciou o retorno dos heróis da Milestone, dessa vez dentro do universo principal da editora. Novamente pelas mãos de Dwayne McDuffie, a integração com a linha principal da DC se deu com o Super Choque entrando para os Jovens Titãs e Icon, Rocket e Hardware aparecendo na série animada da Justiça Jovem, entre outras participações. Com os Novos 52 rebutando todos os títulos da editora, só o personagem Super Choque ganhou sua edição zero, mas seu título durou apenas 8 edições. 

Em Okland, no estado da California, em 2009, o jovem de 22 anos, Oscar Grant III, desarmado, foi algemado enquanto um policial mantinha o joelho no seu pesçoco, e em seguida foi baleado e morto por outro policial. A ação da polícia foi filmada por pelo menos 4 testemunhas. Protestos e tumultos aconteceram logo após o assassinato, depois que o policial, que pediu demissão, foi condenado por homicidio culposo (sem intensão de matar), e novamente depois que o mesmo ex-polícial foi solto, liberado da prisão por bom comportamento depois de 2 anos do julgamento. No final de 2008 os estadunidenses haviam elegido o primeiro presidente negro de sua história.

Em 2015 o roteirista negro Reginald Hudlin propôs o retorno da linha Milestone, junto com os dois criadores originais que ainda estavam vivos – Denys Cowan e Derek Dingle. Meses depois a minissérie Multiversity, escrita por Grant Morrison, organizou as muitas Terras do universo da DC Comics, e estabeleceu a Terra-M como lar das histórias dos personagens da Milestone. Em 2017 foram anunciados 5 títulos novos que seriam lançados no ano seguinte, mas por causa de pendências legais envolvendo as famílias dos criadores o projeto não avançou. 

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A morte do jovem de 18 anos, Michael Brown, na cidade de Ferguson, no estado de Missuri, em 2014, levou a protestos violêntos, principalmente depois que o polícial que o matou foi absolvido pelo tribunal. Em 2015 a morte de Freddy Gray no cidade de Baltimore, no estado de Maryland, levou a protestos que expuseram a corrupção policial da cidade (a recente minissérie “A Cidade é Nossa”, da HBO, mostra a polícia de Baltimore depois da morte de Grey). Também em 2015, o massacre na igreja de Charleston, no estado da Carolina do Sul, que deixou 9 pessoas negras mortas pelas mãos do supremacista branco Dylann Roof, chocou o país e expôs a diferença de tratamento ao mostrar a atitude da polícia ao capturar o assassino (sem violência).

Em 2020, com a resolução das pendências legais, os personagens da Milestone ganharam mais uma chance na DC. Nesse mesmo ano, vídeos mostrando um polícial sufocando um homem negro desarmado e algemado, com a joelho no seu pescoço, viralizaram nas redes socias do mundo todo. George Floyd foi morto na cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, diante das câmeras enquanto agonizava dizendo que não conseguia respirar. Os protestos explodiram por todos os Estados Unidos e ganharam o mundo. 

Essa comparação entre as várias tentativas de dar visibilidade para personagens negros nos quadrinhos de super-heróis e as muitas situações de conflito racial que levaram centenas de pessoas às ruas para manifestar sua indignação, pretende mostrar como é difícil mudar as estruturas sociais que nos servem de base. Para além da visibilidade, a DC Comics (e a Marvel também, assim como o cinema, as séries dos streamings, etc) quer dar voz a criadores negros, latinos, LGBTQIA+ e outras minorias, para que por meio de suas histórias possamos repensar que sociedade queremos.

Junto com a nova linha de título da Milestone, a editora lançou o projeto The Milestone Initiative, que em 2021 selecionou jovens criadores para participarem de uma formação para trabalharem no mercado de histórias em quadrinhos, trazendo suas visões de mundo e experiências para dentro das histórias. Vale muito acompanhar!

Sobre Picareta Psíquico

Uma ideia na cabeça e uma história em quadrinhos na mão.
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2 respostas para O selo Milestone: representação e violência racial

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