A Milestone Media trouxe, nos anos 1990, discussões que só recentemente foram assimiladas pela indústria do entretenimento.
Foi lançado recentemente na HBO dos EUA (sem previsão de disponibilidade aqui pro Brasil) o documentário Milestone Generations, que conta a história dessa produtora de quadrinhos focada em personagens negros. Eu já falei aqui sobre a história da Milestone fazendo paralelos com a história de perseguição e luta dos negros norte americanos dos anos 1990 até hoje. Mas o que chama a atenção no documentário são os outros temas abordados nas histórias de personagens como Icon (Augustus Freeman), Rocket (Raquel Ervin), Hardware (Curtis Metcalfe) e Static Shock (Virgil Hawkins) – sexualidade (gravidez na adolescência e virgindade), gênero (homossexualidade e transexualidade), etnia (colorismo), no contexto social de marginalidade.
O mais famoso deles – Static Shock (Super Choque aqui no Brasil) – ganhou um desenho animado depois que a Milestone já tinha parado a produção de quadrinhos. Foi a capa da edição #25 de Static (1995), que esquentou os desentendimentos entre a Milestone e a DC Comics (que distribuia os quadrinhos da Milestone), levando ao cancelamento da linha em 1997. O tema da edição era a perda da virgindade do adolescente Virgil Hawkins, e na capa em que ele e a namorada aparecem aos beijos no sofá, alguns pacotes de camisinha estão no chão. A DC censurou a capa alegando que aquilo era muito diferente do que as capas de outros títulos da editora. Para Dwayne McDuffie, co-fundador da Milestone, a censura era racismo.

Capa publicada e capa censurada
O roteirista da edição #25 de Static Shock – Ivan Velez Jr. – havia sido convidado para trabalhar na Milestone por causa de seu quadrinho autoral Tales of the Closet, que contava histórias de adolescentes homossexuais. Na nova editora ele ficou responsável pelo título Blood Syndicate, e usou o grupo de superpoderosos ligados à gangues como plataforma para falar sobre gênero, sexualidade e colorismo. O grupo formado por membros de duas gangues rivais que ganham superpoderes depois de uma explosão (mesmo evento que deu poderes ao Super Choque), tem entre seus membros personagens de ascendência latina, chinesa, dominicana, coreana e africana.
Personagens como Fade, um homem gay intangível e capaz de voar, e Masquerade, um homem trans com poderes de metamorfose (possivelmente o primeiro homem trans nos quadrinhos de super-heróis), que escondem sua sexualidade. Ao longo das histórias de Blood Syndicate, um descobre o segredo do outro, mas Fade respeita a privacidade de Masquerade enquanto este último ameaça revelar a verdade para poder manipular Fade. Segundo os autores, a ideia era mostrar os conflitos internos da comunidade LGBTQIA+ e, ao mesmo tempo mostrar o preconceito social em relação a outras formas de sexualidade e gênero.
Deathwish (Wilton Johnson), que aparece como antagonista no título do herói Hardware, tem sua origem contada numa minissérie. Inspirado no Justiceiro, o personagem é um vigilante que caça perpetradores de crimes sexuais. Ele assistiu ao estupro e assassinato de sua esposa e filho, e foi estuprado também antes de receber um tiro na cabeça. A violência extrema de sua origem não é amenizada ou sem consequência. Nas histórias de Hardware descobrimos que muitos dos crimes sexuais que Deathwish investigava eram cometidos por ele mesmo durante lapsos de memória causados pelo trauma severo pelo qual ele passou. Um final muito diferente do Justiceiro, que de vigilante assassino passou a ser visto como modelo de conduta por leitores que ignoram as consequências psicológicas da violência que ele sofreu.
Do título Icon and Rocket, a personagem adolescente Raquel Ervin (Rocket), que é apresentada como uma jovem envolvida com amizades problemáticas num bairro pobre, mas que é ao mesmo tempo, muito madura e inteligente, revela estar grávida. Os diálogos falam de aborto, responsabilidade parental, e gravidez na adolescência. Raquel decide manter a gravidez sem abrir mão de sua atuação como vigilante. O documentário mostra o impacto dessa narrativa para leitoras adolescentes que nunca haviam visto esse tipo de debate numa história em quadrinhos antes.
A colorização das páginas também inovou para representar todo o espectro de tons de pele dos heróis e do elenco de coadjuvantes. O que ficou conhecido como Milestone 100-Color Process consistia em pintar à mão, sobre a arte final, usando aquarelas ou corantes Dr. Martin, que são translúcidos (não cobrem o preto da arte-final). Dessa forma o resultado era uma arte mais rica em cores e nuances de luz e sombra, muito mais parecido com o que vemos nos quadrinhos hoje (que é fruto do processo digital de finalização da arte), do que dos quadrinhos que eram produzidos nos anos 1990.
Essa primeira fase dos quadrinhos da Milestone aconteceu entre 1993 e 1997, antes das redes sociais dominarem a internet. Os temas debatidos nas histórias, a diversidade dos personagens e a linguagem dos diálogos eram diferentes da maior parte dos quadrinhos que a Marvel e a DC produziam. Suas histórias anteciparam muitos dos assuntos que vemos hoje nas páginas de heróis campeões de vendas como Superman e Batman, e que causam tanto debate e intolerância nas redes sociais. Mais do que isso, na Milestone eram roteiristas e desenhistas negros falando sobre a experiência de ser negro numa sociedade racista, homossexuais escrevendo histórias de personagens homossexuais, ou seja, um grau de representatividade e de voz que só anos depois chegou à indústria de quadrinhos (e do entretenimento em geral) de maneira ampla.
Em 1997, com vendas baixas e interferência editorial da DC Comics, o projeto foi cancelado. O desenho animado do Super Choque deu uma sobrevida ao projeto e no calor dos conflitos raciais e do ativismo do Black Lives Matter, a Milestone recomeçou em 2020. Seria muito interessante ver todo esse material publicado aqui no Brasil! Acorda, Panini!
Conheci os personagens da Milestone na saga “Mundos Colidem” que fazia um crossover dos personagens com o elenco do Superman e que foi publicada na revista do Superboy durante os anos 90. Sempre tive curiosidade sobre o “Dakotaverso” e pena que as publicações foram escassas por aqui. Com o revival, espero que a Panini publique!
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