Uma polêmica que nasceu para ser esquecida.
Relembrando: no último dia 12/10, o jogador de vôlei Maurício Souza postou o seguinte comentário no Twitter:
A postagem critica a forma que o filho de Superman, bissexual, foi retratado. O começo de algo impoluto que estaria por vir, segundo insinuou o jogador.
Dias depois, graças ao cunho homofóbico da postagem, o Minas Tênis Clube rescindiu o contrato com o jogador. Ficou claro, homofobia não está entre os objetivos daquela entidade esportiva.
Não é exagero dizer, homofobia expressa uma visão de mundo disseminada na sociedade brasileira. Presente tanto na postagem do jogador como comentários em diferentes espaços, traz uma visão baseada em uma moral, na falta de termo melhor, “conservadora”. E é difícil ignorar, o conservadorismo reflete uma face da identidade nacional.
“Velho, isso é o mesmo que dizer que somos todos homofóbicos! Que absurdo! Até tenho amigos gays!”, talvez pense você, indignado. O que é um bom sinal, afinal desconforto faz parte de todo crescimento. Mas pense bem.
Entre 1500 e 1808, sob o domínio ibérico, a sociedade brasileira herdou modelos de viver e pensar característicos de uma mentalidade medieval. A chegada de Dom João VI ao Brasil fortaleceu demarcações sociais de forma ainda mais nítida: em uma ponta, gente dotada de enormes latifúndios foram alçados à condição de nobres, condes, duques e marqueses; na outra ponta, nativos e escravos, sujeitos despidos de qualquer direito, exceto aqueles concedidos pelas cortes como se fosse algum tipo de “privilégio”. Uma hierarquia impermeável de estratos sociais, de distinção e separação dos corpos, em que os papéis eram visualmente demarcados. Qualquer semelhança com as camisas de futebol é mera rima histórica.
De geração a geração, esta forma de compreender o mundo e de se relacionar constitui um modelo que tem como base a diferenciação inflexível entre “superiores” e “inferiores”. É a raiz da expressão “Você sabe com quem está falando?”, como expediente de afirmação social, tão bem observada por Roberto DaMatta. Fica claro, a tradição conservadora brasileira tem o racismo e a separação dos segmentos sociais como pilar fundamental.
Nunca é demais lembrar, em 388 anos de escravidão, segundo dados extraídos do Slave Voyages, o Brasil foi o 2º local com maior entrada de escravos na América. Vale dizer também, o último a abolir a escravidão.

Em que pesem os ideais iluministas de racionalidade ou de “igualdade, liberdade e fraternidade” após a Revolução Francesa, entre meados do século 19 até a Lei Áurea (1888), as políticas abolicionistas não foram resultado apenas da lucidez humanitária que emergiu da cabeça de gente ilustrada e bem intencionada. Em grande parte, o abolicionismo deriva também da eugenia, do “higienismo social” e de um cientificismo que dava suporte à defesa do “branqueamento” da sociedade brasileira por meio da mestiçagem.

Ideia de gente como o diplomata francês Joseph Arthur de Gobineau, buddy de D. Pedro II que defendia a imigração de europeus para Brasil como “cura” modernizante. Vem daí a associação entre “miscigenação” e “virtude” nacional, o que décadas depois seria sacralizada por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, em 1933.
Freyre deu o revestimento sociológico para aquilo que o futebol e o carnaval já haviam festejado naquelas primeiras décadas do século 20: a celebração do negro e a exaltação da mestiçagem como marcas da identidade brasileira, da aptidão à adversidade e da engenhosidade diante da injustiça. Em uma palavra: a malandragem.

A concepção de “harmonia racial” trazia um discurso conveniente. Por meio dele, o lucrativo setor do turismo, do esporte e entretenimento operou uma reelaboração cultural que demarcou espaços “aceitáveis” de convívio dos corpos brancos e negros: o estádio para o futebol e a rua para o Carnaval, ambos apenas em datas específicas. Mais do que camuflar os traços mais nocivos da herança racista, foram transformados em expedientes secularizados pelos decretos do poder público.
Ao observar os dados levantados pelo IBGE, é seguro reconhecer que, entre 2012 e 2018, o número de estudantes pretos ou pardos (as próprias categorias incitam o debate) se formando em cursos de ensino superior está aumentando.

O acesso à educação básica e superior garantem subsídio e espaços de debate que antes eram restritos a segmentos exclusivamente brancos. As pautas indentárias pressionam o debate público e influenciam a decisão de empresas, como foi no caso do time Minas Tênis Clube.
No entanto, mesmo com acesso de negros e pardos à educação básica e superior, Jair B., entre outras alcunhas, candidato de pautas conservadoras, foi eleito em 2018. É bem razoável pensar que essa vitória se deu com o apoio de parte do eleitorado preto/pardo. Talvez, este eleitor se reconhecesse alocado nos nichos neopentecostais. Afinal, entre as defesas destes partidos está a agenda liberal do micro-empreendedorismo, promessa de uma inclusão econômica negligenciada desde as primeiras leis abolicionistas.
Mas de volta à bissexualidade do Superman. Enquanto o racismo brasileiro possa ter se camuflado ou até negado por muita gente desde a década de 1930, o mesmo ainda não aconteceu com as temáticas LGBTQIA+. Parece não existir um equivalente ao Gilberto Freyre que atribua o homossexualidade como um aspecto positivo da identidade brasileira. (Mas posso estar errado. Indicações bibliográficas nos comentários são bem vindas. = )
Apesar disso, o entretenimento é repleto de personagens LGBTQIA+. Meia-Noite e Apolo, Harley Quinn, Hera Venenosa, Homem de Gelo, Promethea, John Constantine, Shatterstar, Rictor, Mulher-Maravilha, Batwoman, Loki, Sandman, e dezenas de outros são personagens identificados pelos autores e leitores como não-heterossexuais. Até mesmo o maior ícone da masculinidade hétero, James Bond, em Skyfall (dir. Sam Mendes, 2012), já foi retratado como alguém despido de pudores normativos. A indicação estava lá, mas muita gente escolheu ignorar.
O que mais chama atenção no episódio do filho do Superman é que Maurício Souza se sentiu convidado a fazer uma crítica a um herói cujo símbolo é caro ao imaginário coletivo. Fosse um herói “menor” da DC ou da Marvel, o tema talvez nem viesse à tona.
Queiram detratores ou não, representatividade é o nome que se dá para marcar a presença daqueles que sempre estiveram aqui. Rejeitar o espaço que dá voz a estas pessoas é errado, simplesmente. O que leva a indagar: alguém lembra o nome de algum jogador ou, vá lá, “celebridade” do século 19 que era contra a abolição da escravidão? Às vezes é reconfortante pensar que há episódios da História que o futuro jamais vai se dar ao trabalho de recordar.
Enquanto era a Arlequina e a Hera Venenosa se beijando, ngm se doeu. N sei se isso é homofobia, ou machismo com homofobia, pq os caras são seletivos, eles n gostam de homens se beijando, pq aí n é fetiche deles.
Pingback: Links da semana #14 – Geek do Direito
Boa noite. Eu vim do futuro de outubro de 2022. eu estou transmitindo que na minha época a revista já foi cancelada.
E viemos aqui mais do futuro ainda comunicar que um novo título estrelando o personagem se inicia em 2023: https://www.thepopverse.com/adventures-of-superman-jon-kent-dc-new-york-comic-con-nycc-2022
Pingback: Quadrinhos à frente de seu tempo – Milestone Media | Quadrinheiros