Das ideias que não se pode esquecer: A sedução do mito fascista

juiz dreddUm curso gestado mas não realizado dos Quadrinheiros.

De mil ideias não realizadas e livros não escritos, um curso jamais oferecido pelos Quadrinheiros foi sobre a rente proximidade entre sexualidade, super-heróis e o fascismo. A ideia vem daquela sensação de desconcerto e perplexidade diante da realidade, da necessidade de se perguntar “como foi possível isso acontecer?”. Da sensação de banzo que não para de crescer desde aquele aumento da tarifa de ônibus em 2013.

Entre as questões a se abordar estavam: por que projetos autoritários atraem tantos adeptos? Como explicar a relação entre certos trajes e autoridade? Existe similaridade entre o herói da ficção e o líder político? Quais são as características comuns destes dois? Por que alegorias eróticas buscam inspiração em narrativas heróicas? Fantasias politicas buscam inspiração nos heróis de HQ? Se sim, quais seriam elas?

Uma das fontes para o curso, claro, estava o intrépido ensaio de Susan Sontag, o Fascinante Fascismo, publicado em 1974 e tristemente atual. Entre as passagens mais provocativas do ensaio, discorrendo sobre a influência do imaginário simbólico nazista sobre as fantasias sexuais, Sontag afirmava que

[…] a SS foi a encarnação do ideal da afirmação pública do fascismo, da justeza da violência, do direito de ter poder total sobre os outros, e de trata-los como absolutamente inferiores. […] A SS foi planejada como uma comunidade militar de elite que não era apenas supremamente violenta, mas também supremamente bela.  […] Os uniformes da SS eram elegantes, bem cortados, com um toque (porém não excessivo) de excentricidade. Compare com os relativamente tediosos e não muito bem cortados uniformes do exército americano: jaqueta, camisa, gravata, calças, meias e sapatos com cadarço – roupas essencialmente civis, não importa o quanto estejam adornadas de medalhas e faixas. Os uniformes da SS eram justos, pesados, rijos, e incluíam luvas para confinar as mãos e botas que faziam as pernas e os pés parecerem pesados, encerrados (SONTAG, Susan. O Fascinante Fascismo In Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LPM, 1986, p. 78)

Naquele ensaio a autora americana discorria sobre a linha direta entre sexo e violência no ideal estético do nazismo, exemplificados nas obras da diretora e fotógrafa Leni Riefenstahl, em obras como O Triunfo da Vontade e o livro Os Últimos Nuba. Segundo Sontag, no imaginário nazi-fascista, as relações sexuais e a prática política refletiam o que era meramente “bom” e “adequado”. Apenas o sadomasoquismo e a guerra eram as expressões mais “puras” da beleza humana. Assim, se o conteúdo do fascismo foi neutralizado pelo padrão estético que cobriam seus líderes, os ornamentos legados por eles foram sexualizados. Afirma Sontag que:

Grande parte da fantasia sexual superexcitante foi colocada sob o signo do nazismo. Botas de couro, correntes, Cruzes de Ferro em torsos fulgurantes, suásticas, juntamente com ganchos de carne e motocicletas pesadas, tornaram-se a secreta e mais lucrativa parafernália do erotismo. Nas sex shops, nas saunas, nos bares barra pesada, nos bordéis, pessoas arrastam seus acessórios. Mas por que? […]

Uma chave repousa nas predileções dos próprios líderes fascistas por metáforas sexuais. Como Nietzsche e Wagner, Hitler considerava a liderança como um domínio sexual das massas “femininas”, como estupro. (A expressão das multidões em O Triunfo da Vontade é de êxtase; o líder faz com que a multidão se aproxime.) Movimentos de esquerda tenderam a ser unissex e assexuais em seu imaginário. Movimentos de direita, não importa quão puritanas e repressivas sejam as realidades que eles anunciam, têm uma aparência erótica. Certamente o nazismo é mais sexy que o comunismo (o que nada credita aos nazistas, mas, pelo contrário, mostra algo da natureza e dos limites da imaginação sexual). (SONTAG, Susan. O Fascinante Fascismo In Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LPM, 1986, p. 81)

Para Sontag, o nazi-fascismo é esteticamente sedutor, o que parcialmente explica a adesão das massas aos seus projetos. A percepção não foi apenas dela, mas compartilhada ainda na década de 1940 pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos na 2ª Guerra Mundial. A preocupação com o poder agregador do nazi-fascismo levou à contratação de célebres produtores e diretores de cinema como Frank Capra e Walt Disney, e à criação do Office of War Information.

Além de um sólido apego à nossa integridade física, entre as razões para este curso não existir está a dificuldade de se estabelecer um critério de abordagem sem insultar uma parcela de nosso fiel público, afinal no cercado de cada um cada qual faz o que quer e ninguém tem nada com isso.

Outro motivo, mais árduo, é a necessidade de um levantamento documental e bibliográfico sustentável para uma exposição e debate. O risco de violar esta etapa é tomar uma série de impressões como fatos. Convenhamos, isso já tem gerado problemas demais para todo mundo. Até lá, esta continua sendo uma das ideias que aguardam a hora certa de se tornar realidade. Este é só o começo.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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3 respostas para Das ideias que não se pode esquecer: A sedução do mito fascista

  1. Essa reflexão é muito interessante mesmo. Você viu a disputa de narrativas em torno do filme Matrix?

    https://brasil.elpais.com/cultura/2021-06-11/matrix-o-classico-do-cinema-criado-como-uma-metafora-trans-agora-e-uma-arma-da-extrema-direita.html

    Fiquei pensando sobre a estética dos personagens que tomaram a pílula vermelha (na linha do erotismo da SS) e da identificação desses personagem com a direita conspiracionista. E fiquei pensando se a interpretação que os INCELs fazem do filme “Clube da Luta” tem mais relação com a estética do filme do que com o texto do livro. Qual o peso da imagem nessas leituras?

    • Velho Quadrinheiro disse:

      Já ensinava McLuhan, o meio é a mensagem. Penso que na percepção mais rasa, imagem substitui o conteúdo, na forma que a Sontag descreveu. Portar os símbolos e vestimentas ligadas aos uniformes nazistas parece ser um atalho para alcançar um êxtase que a vida normal (digamos, a vivência democrática), não tolera. Avizinhar a violência fascista e o sadomasoquismo é sentenciar os dois campos como marginais, algo proibido, por isso seu fetiche.

      Agora, essa inversão do sentido Matrix é o fim da picada. Ver nos protagonistas de Matrix uma afirmação de valores “tradicionais” é usucapião estético de quem não prestou atenção no filme. Mas dá pra entender. “Tomar a pílula” no sentido de uma “revelação” de uma “verdade” que confirma os próprios valores é mais sedutor do que “vai ler os livros que seus opositores leram”. Hannah Arendt e Sontag, sempre atuais.

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