Quando pacifismo e belicismo entram em choque, a arte emerge com intenções e objetivos.
Ontem, dia 9/8 e a última 5ª feira, dia 6/8, marcaram os 75 anos dos ataques contra Nagasaki e Hiroshima na 2ª Guerra Mundial. As solenidades conduzidas pelas autoridades das duas cidades, que contaram com a presença do Primeiro-Ministro japonês Shinzo Abe, não deixam esquecer: os ataques nucleares executados pelos americanos em 1945 provocaram um dos maiores traumas da história japonesa. Não só isso, a morte de cerca 80 mil pessoas, vaporizadas em um único instante, deram substância e materialidade ao holocausto atômico no imaginário mundial.
Desde então, genocídios similares aos de Hiroshima e Nagasaki servem como cenário de diversas obras de ficção japonesas. Tanto nos mangás quanto nas versões em anime, os exemplos são inúmeros. São obras clássicas, cults, queridas pelos fãs, como a saga do Encouraçado Espacial Yamato, as aventuras do Capitão Harlock, Akira ou de Gen: Pés Descalços, leitura torturante e indispensável.
Sem exagero, o holocausto nuclear faz parte do imaginário social japonês e os animes revelam isso. De todos, arrisca-se aqui, a série Macross é a sua mais forte expressão. Já falamos deste anime aqui. A série se tornou uma franquia com diversas obras derivadas para diferentes mídias, e cuja última continuação foi em 2016, com Macross Delta.
Assim como Star Trek nos Estados Unidos, no Japão, Macross ajudou a sedimentar uma mentalidade. Anseios e desejos de um grupo de pessoas num determinado período se projetam na narrativa. Os temas de Macross se tornaram icônicos e cada nova edição acrescenta um capítulo para a saga. E parece que refletem o espírito de diferentes tempos. Se você não conhece, a história é um clássico de ficção científica.
Super Dimension Fortress Macross (1982-1983, 36 episódios). Direção de Noboru Ishiguro, roteiros de Kenichi Matsuzaki e Hiroshi Ônogi, design de Kazutaka Miyatake e Shōji Kawamori
Na história original, em 1999, uma nave alienígena, do tamanho de uma cidade, despenca sob os céus do Pacífico. Caindo numa ilhota japonesa, devasta o lugar por completo. Era o prenúncio de uma invasão. Unida em um novo governo mundial, a humanidade busca compreender a tecnologia do artefato e criar novas armas para se defender do ataque. Dez anos depois, esmagadora, esta agressão vem da raça Zentreadi, devastando praticamente toda a população da Terra.
Os Zentreadi fazem parte de um império de conquistadores planetários, composta de gigantescos seres de 15m de altura. Guerreiros assexuados, eles são gerados via engenharia genética e separados por completo das mulheres. Estas são consideradas pelos Zentreadi como uma raça à parte, as Meltrandi.
A nave caída foi reconstruída e batizada de Macross. Com a humanidade em fuga, o veículo da tragédia virou um lar para os sobreviventes e quartel-general dos esquadrões de defesa, os caças Valkyries. Como não podia deixar de ser numa série criada para vender brinquedos, tanto a Macross quanto os Valkyries são variáveis, isto é, se transformam em robôs. As batalhas alucinantes contra as forças Zentreadi se tornaram uma aula de narrativa em animação.
Em paralelo acontece a história de um triângulo amoroso formado pelo protagonista, o piloto Hikaru Ichijyo, Misa Hayase, subcomandante da Macross, e Lynn Minmay, cantora que se tornou uma celebridade a bordo da nave. Em dado momento, as canções de Minmay provocam uma reação nos guerreiros Zentreadi. Criados para a guerra, eles despertam para sentimentos desconhecidos, como afeto, desejo, luxúria e amor. De imediato, sem saber explicar por quê, eles se sentem com nojo.
Cabe como uma luva, Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (1871), esclarece o efeito da arte:
O embevecimento [êxtase] do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade dionisíaca separam-se um do outro. Mas tão logo aquela efetividade cotidiana retorna à consciência, ela é sentida como tal, com nojo, uma disposição ascética, de negação da vontade, é o fruto desses estados. […]
[…] Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte: só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como demonstração artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. (NIETZSCHE, F.. O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música In Os Pensadores – vol. 32. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 17)
Uma forma de interpretar Nietzsche seria dizer que a arte teria um efeito “domesticador” dos impulsos mais íntimos, conflitantes. Não só isso, para os Zentreadi, estes sentimentos são reprováveis. A música de Minmay despertou um emoção vital naqueles guerreiros, a vontade de se unir, e não destruir o outro.
Tema arrastado ao longo dos capítulos, o romance dos três personagens, e o êxtase que as músicas de Minmay provocam, revelam-se o catalizador do armistício entre as duas raças. Para simbolizar este efeito acontece o casamento entre ex-rivais, o piloto Max Jenius, melhor amigo de Hikaru, e a guerreira meltrandi Milia Fallyna.
Dito de outra forma, na metáfora narrativa de Macross, a guerra se dava entre duas forças mentais interiores: de um lado, a vontade de crescer, de poder, e “frutificar”, representada por Hikaru e Minmay. De outro, a vontade de submeter, de vencer, e aniquilar, representada pelos Zentreadi. Tais polos canalizam as deidades da mitologia clássica, Eros (unificador) e Thânatos (aniquilador). Na primeira versão de Macross, a música surge como elemento conciliador e erótico. A arte se revela canal de redenção para os dois lados da guerra. Ora, essa forma de se dirigir à tensão narrativa não é uma maneira de se posicionar diante do genocídio, o nauseante passado, a tragédia de 1945? Algo como “faça arte, não faça guerra”?
Depois da série original e de uma versão em OVA (um tipo de longa metragem), Macross teve mais cinco séries consideradas cânones narrativos e que se passam após a aliança entre humanos e Zentradi. Mas a cada versão, a balança do imaginário narrativo ora pende para um lado, ora para outro: ora enfatiza o protagonismo do aspecto “erótico”, que celebra a arte e um impulso “pacifista”, ora enfatiza o aspecto “thanático”, belicoso. O que as séries sugerem é que ambos são capazes de inebriar os personagens. E isso é revelador.
Macross 7 (1994-1995, 49 episódios). Direção Tetsurō Amino, design de Kazutaka Miyatake e Shōji Kawamori
Macross 7 se passa em 2038, 35 anos depois do armistício com os Zentreadi. O protagonista é Basara Nekki, vocalista da banda Fire Bomber, e namorado de Mylene Flare Jenius, filha de Max Jenius e Milia Farina. Nekki, sujeito com uma pinta de John Lennon, se agarra à convicção de que a música levará paz à galáxia mais uma vez.
Macross Plus (1994, 4 episódios). Direção e design de Shōji Kawamori e Shinichirō Watanabe. Roteiro de Keiko Nobumoto.
Macross Plus se passa em 2035, alguns anos antes de Macross 7, no planeta Eden. Lá se dá uma disputa para selecionar o novo caça Valkyrie da UN Spacy (Nações Unidas do Espaço). O protagonista é Isamu Dyson, um piloto que recusa promoções na carreira, uma vez que é obcecado pelo êxtase do vôo e da guerra, efeito que não é alcançado pela música da cantora mais popular do período, Sharon Apple.
Macross Zero (2002-04, 5 episódios). Direção de Shōji Kawamori, roteiro de Hiroshi Ônogi, design de Junya Ishigaki, Kazutaka Miyatake, e Shōji Kawamori
Esta série é um prelúdio da própria série original Macross, antes da invasão dos Zentreadi. Conta a história de Roy Focker, que se tornará mentor de Hikaru, e os desafios de pilotar os protótipos dos Valkyries. Focker, assim como Isamu Dyson, fica inebriado pelo desafio do vôo, dos novos Valkyries, e das demais armas que a humanidade estava concebendo. Repare-se aqui o padrão: toda vez que o designer mecânico Shoji Kawamori é chamado para direção, a ênfase da série é o enredo militar da trama.
Macross Frontier (2007-08, 25 episódios) Direção de Shōji Kawamori e Yasuhito Kikuchi, roteiro de Hiroyuki Yoshino, design de Junya Ishigaki e Takeshi Takakura.
Macross Frontier se passa em 2048, 10 anos depois de Macross 7, com a humanidade se espalhando pela galáxia e evitar um novo genocídio. Desta vez a música tem um efeito desmobilizador das forças alienígenas. Os protagonistas mais uma vez compõem um triângulo amoroso, formada pelas duas cantoras Ranka Lee e Sheryl Nome, e o piloto Alto Saotome.
Macross Delta (2016, 26 episódios). Direção de Kenji Yasuda, roteiro de Toshizo Nemoto, design de Shōji Kawamori e Kazutaka Miyatake
A mais recente série derivada de Macross se passa em 2067, 50 anos depois da Macross original. Os protagonistas mais uma vez formam um trio amoroso, formado pelo piloto Hayate Immelman, a instrutora de vôo dele, Mirage Farina Jenius (neta de Max Jenius e Milia) e a aspirante a cantora Freyja Wion. De todas as continuações, é o oposto mais evidente da Macross original. Aqui a música foi transformada em arma desde o início da série. A defesa da humanidade, cada vez mais espalhada no espaço, se dá por meio de uma equipe terceirizada, formada por pilotos de Valkyries e de um grupo de cantoras levadas à frente de batalha. As canções e coreografias delas provocam uma desmobilização das forças rivais. O que faz pensar: a arte, que antes foi um canal de pacificação, não se tornou uma ferramenta de aniquilação, anti-erótica, ao ser planejada especificamente para neutralizar o inimigo?
Claro, estamos falando de desenho animado feito para vender brinquedos, assim como Transformers e Star Wars. É quase negligência não mencionar a evolução dos designs mecânicos dos caças Valkyries, o que unifica as diversas séries e compõem um universo referencial prolífico para mais histórias.
Mas o foco aqui é outro. O que se acentua aqui é que as séries, em suas diversas interações, constituem o imaginário. Ou seja, produzem significado, sentido, constituem o real e organizam modelos mentais de interpretar o mundo e formas de interação entre nós.
Como apontou o noticiário do Uol, apesar dos apelos do prefeito de Nagasaki, Tomihisa Taue, o chanceler do Japão, Shinzo Abe se recusa a ceder à assinatura do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares da ONU. Sob o signo da defesa nacional contra Coréia do Norte, o Japão segue os passos da atual cartilha de relações internacionais dos Estados Unidos. Curioso e que se chama atenção aqui, este posicionamento, nacionalista e belicoso, parece ter sido previsto justamente na cultura pop japonesa em 2016 com Macross Delta.